Um artigo recente de Ann Lewis, publicado pelo Niskanen Center nos Estados Unidos, oferece uma análise perspicaz sobre por que grandes projetos governamentais, especialmente na área de tecnologia, frequentemente emperram apesar dos investimentos significativos. As soluções propostas pela autora são todas excelentes: enfatizar resultados, financiar continuamente capacidades, construir expertise interna, garantir flexibilidade, focar nos usuários e exigir accountability da liderança. Elas se alinham bem com o pensamento contemporâneo sobre como melhorar os serviços públicos e fornecem um roteiro valioso.
Os princípios centrais do artigo, embora enquadrados através da tecnologia, têm relevância universal para melhorar todos os serviços públicos. Seja gerenciando educação, saúde ou serviços sociais, as mesmas armadilhas existem e soluções similares se aplicam. Focar nos resultados de aprendizagem dos estudantes em vez da simples entrega de currículo, planejar prevenção em saúde além de construir clínicas, ou pilotar um programa social com cidadãos antes do lançamento completo – tudo isso traduz diretamente a sabedoria do artigo para domínios não-técnicos e destaca práticas básicas de boa gestão.
No entanto, implementar essas abordagens sensatas enfrenta obstáculos formidáveis dentro de muitas estruturas do setor público – obstáculos que são particularmente agudos no Brasil, mas que existem em vários graus ao redor do mundo.
O problema estrutural dos recursos humanos
O primeiro e mais fundamental obstáculo são sistemas de recursos humanos profundamente disfuncionais. É incrivelmente difícil atrair, avaliar e reter pessoas com experiência comprovada em gestão e tecnologia. O recrutamento frequentemente prioriza conhecimento memorizado testado por concursos, ou simples tempo de serviço, sobre habilidades demonstradas na prática.
No Brasil, esse problema é amplificado pelo sistema de carreiras rígidas e vitalícias que discutimos anteriormente. Em vez de um sistema flexível baseado em posições definidas pelas necessidades atuais e habilidades requeridas, temos estruturas organizadas em torno de categorias legais que frequentemente reforçam interesses corporativistas. Embora a estabilidade no emprego público tenha seus méritos, quando combinada com processos de contratação fracos e gestão de desempenho ineficaz, ela prejudica significativamente a adaptabilidade organizacional.
O resultado prático é que se torna quase impossível construir equipes dinâmicas com o mix certo de habilidades técnicas ou abordar o baixo desempenho quando ele ocorre. Essas falhas de RH bloqueiam fundamentalmente o desenvolvimento da forte capacidade interna que o artigo americano corretamente defende como essencial para qualquer transformação digital bem-sucedida.
Rigidezes orçamentárias e de compras
Além do RH, outras rigidezes sistêmicas criam imensa inércia. Há rigidezes orçamentárias enraizadas que trancam fundos em categorias pré-definidas independentemente dos resultados obtidos. Isso se manifesta em dinâmicas prejudiciais como o orçamento “use ou perca”, onde órgãos se apressam para esgotar dotações anuais para evitar cortes futuros, priorizando gasto sobre efetividade.
Similarmente, normas rígidas de compras públicas priorizam igualdade formal sobre valor estratégico. Em muitos casos, tratar todos os fornecedores como intercambiáveis torna-se mais importante do que recompensar aqueles com histórico comprovado de entregar resultados. Isso é particularmente problemático para projetos de tecnologia, onde a experiência específica e a capacidade de adaptação são cruciais.
Esses sistemas foram desenhados para prevenir corrupção e garantir transparência – objetivos louváveis. Mas na prática, frequentemente acabam punindo competência e inovação, criando incentivos perversos que favorecem a mediocridade segura sobre a excelência arriscada.
A cultura do risco zero
Como observa Steve Foreshew-Cain, ex-Diretor Executivo do Government Digital Service, no Reino Unido, no coração desses desafios está “a cultura do serviço público” – não os servidores públicos em si, que são frequentemente altamente qualificados e orientados por missão, mas sim um sistema moldado ao longo de décadas para evitar riscos e gerenciar complexidade através de burocracia em vez de colaboração e inovação.
Essa dimensão cultural agrava os problemas estruturais através de um mal-entendido fundamental sobre transformação digital, tratando-a primariamente como uma questão tecnológica quando na verdade é sobre transformar a forma como as pessoas trabalham. A governança tradicional reforça um sistema onde a inovação é arriscada e assumir riscos calculados não é recompensado, criando incentivos que ativamente resistem às mudanças culturais necessárias.
A cultura legada padroniza nas formas estabelecidas de fazer as coisas, mesmo quando ninguém consegue explicar por quê essas formas ainda fazem sentido. Essa inércia cultural frequentemente se torna mais limitante do que qualquer sistema técnico desatualizado.
O teatro da modernização
Combinado com um procedimentalismo paralisante que eleva processo sobre propósito, essas restrições frequentemente resultam no que podemos chamar de “teatro da entrega”. Organizações imitam práticas modernas de desenvolvimento sem realmente mudar como trabalham, resultando em processos supostamente “ágeis” que paradoxalmente desaceleram a entrega e aumentam custos.
Vemos isso acontecer quando órgãos públicos adotam vocabulário de inovação – falam de “design thinking”, “metodologias ágeis”, “foco no usuário” – mas mantêm intactas as estruturas e incentivos que impedem essas abordagens de funcionar na prática. O resultado é uma modernização cosmética que gera mais burocracia, não menos.
A fuga através de exceções
Diante de tais dificuldades profundas para operar efetivamente, um contorno comum emerge: a criação de agências especializadas ou estruturas especiais desenhadas para “escapar” das regras padrão, conseguindo flexibilidade operacional por exceção.
No Brasil, vemos isso na proliferação de organizações sociais, fundações de apoio, empresas públicas de TI, e outros arranjos que tentam combinar agilidade privada com recursos públicos. Embora essa “privatização da governança” às vezes produza resultados isolados, ela evita reforma sistêmica.
O resultado é uma governança dual: regras pesadas para a burocracia central, agilidade para poucos selecionados. Isso aumenta a complexidade e inequidade geral do sistema, em vez de adaptar as regras centrais para permitir flexibilidade adequada onde apropriado.
O ciclo vicioso da terceirização
A própria dificuldade de fazer as coisas efetivamente dentro do sistema tradicional frequentemente impulsiona exatamente o problema que Lewis destaca no artigo americano: terceirização custosa e em larga escala. Funções são completamente transferidas para fornecedores externos, frequentemente a preços inflacionados, simplesmente porque navegar no labirinto interno é muito difícil.
Isso cria uma situação onde governos lutam para ser clientes inteligentes no mercado de tecnologia, levando a dependências não saudáveis que corroem ainda mais a capacidade interna. O resultado é essencialmente pago duas vezes: uma vez pela equipe interna subutilizada ou mal equipada, presa por estruturas rígidas, e novamente pelo contratado externo contratado para contornar essas estruturas.
Pior ainda, quando a terceirização não funciona bem (o que acontece frequentemente), o órgão público não tem capacidade interna para diagnosticar o problema ou corrigi-lo, criando dependências ainda maiores e ciclos de fracasso cada vez mais custosos.
A necessidade de reforma fundamental
Assim, embora as recomendações do artigo americano sejam inestimáveis, realizar seu potencial requer confrontar essas questões profundamente enraizadas e politicamente sensíveis de estrutura do serviço público, procedimento administrativo e os interesses estabelecidos que mantêm o status quo.
Foreshew-Cain reforça essa perspectiva ao enfatizar que servidores públicos competentes e bem-intencionados são frequentemente constrangidos pelo sistema no qual operam. Tanto a análise americana quanto a britânica convergem numa conclusão similar: a verdadeira transformação digital requer reforma fundamental da forma como o governo funciona, abordando não apenas sistemas técnicos mas também as estruturas subjacentes de recursos humanos e as culturas organizacionais que moldam o comportamento cotidiano.
Para países como o Brasil, isso significa reconhecer que não podemos simplesmente importar boas práticas de transformação digital sem primeiro criar as condições estruturais que permitam que essas práticas floresçam. Caso contrário, estaremos condenados a repetir o ciclo de projetos custosos que prometem muito e entregam pouco, não por falta de boa vontade ou recursos, mas porque as estruturas fundamentais do Estado impedem o tipo de agilidade e accountability que a era digital exige.
A lição é clara: a transformação digital no setor público não é principalmente sobre tecnologia. É sobre transformar as estruturas básicas de como o governo se organiza, contrata, orça e incentiva seus servidores. Sem essa reforma mais profunda, mesmo as melhores estratégias digitais permanecerão como teatro, não como mudança real.