Nos últimos 30 anos aprendemos que o fim do regime autoritário e o início da democracia não significaram o início do estado de direito e muito menos da universalização dos direitos humanos.
O massacre do Carandiru talvez constitua o maior símbolo da incompletude de nossa transição. Seja pela brutalidade que marcou aquele momento, seja pela negligência das diversas instâncias de aplicação da lei em reconhecerem o abuso e responsabilizarem os que o praticaram. Nesse sentido, a mais recente decisão da 4ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça de São Paulo, anulando decisão do Tribunal do Júri que condenava 74 partícipes daquela chacina não chega a surpreender. O que gerou maior perplexidade foi o voto do desembargador Ivan Sartori, que absolveu policiais, em clara usurpação da competência constitucional do júri.
Desafortunadamente tive a oportunidade de acompanhar profissionalmente os desdobramentos do massacre, ingressando no pavilhão 9 da Casa de Detenção pouco tempo depois do massacre. Duas imagens ficaram impregnadas em minha memória: a água vermelha empurrada pelo rodo dos presos que faziam a faxina, e as marcas de balas encravadas nas paredes das celas, sempre à meia altura, deixando claro que as vítimas foram eliminadas de cócoras, em posição de rendição. Indelével, ainda, o cheiro de morte.
Se foi surpreendente que policiais militares tivessem incorrido naquela desastrosa operação, na presença de juízes corregedores, que até hoje não sabemos como agiram, o mais inquietante foi a absoluta incapacidade das instituições de aplicação da lei do estado de São Paulo para realizar uma investigação autônoma e levar ao devido termo a apuração das responsabilidades dos que ordenaram e realizaram o massacre.
Como demonstram Marta Machado e Maíra Rocha Machado, em “Carandiru não é coisa do passado”, as falhas começaram pela desfiguração da cena do crime, o que dificultou imensamente a produção de provas periciais. Uma segunda omissão gritante foi a ausência de qualquer investigação sobre o envolvimento de altas autoridades civis no massacre, apesar do Ministério Público ter sido oficiado pela Promotoria Militar sobre indícios de envolvimento dessas autoridades. É de setores do Tribunal de Justiça, no entanto, a responsabilidade maior pela demora neste julgamento. Da pronúncia até hoje vão quase 20 anos. Estima-se que o processo tenha ficado ao menos dez anos parado, sem qualquer justificativa, em seus escaninhos.
Alguns magistrados também demonstraram sua inapetência para aplicar a lei de forma imparcial ao subverterem a decisão do Tribunal do Júri, que havia condenado o coronel Ubiratan Guimarães, ou ao arbitrarem valores indenizatórios irrisórios aos familiares das vítimas.
Este processo deveria há muito ter tido a sua competência deslocada para a Justiça Federal, em conformidade com o artigo 109, V, parágrafo 5º da Constituição Federal, por patente e constrangedora incapacidade das instituições estaduais de oferecer uma resposta jurídica eficaz a este caso. Talvez ainda haja tempo para a federalização deste julgamento, antes que a prescrição cubra o massacre com o manto da impunidade.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 1º de outubro de 2016.
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