Depois de mais de um ano e meio sem os presidentes do Mercosul poderem reunir-se, por causa da crise e da suspensão da Venezuela, a 50ª reunião do grupo, realizada em julho em Mendoza, na Argentina, foi uma das mais importantes dos últimos anos, como evidenciado por seus resultados.
Do ângulo político, o encontro de Mendoza pode ser considerado um marco na história do bloco. Houve consenso quanto à retomada dos objetivos iniciais do Mercosul. A prioridade para a liberdade de comércio e para a abertura de mercados, perdida nos últimos 15 anos, voltou a valer. Havia sido relegada a segundo plano quando os governos deixaram de lado as negociações comerciais externas e dentro do bloco, privilegiando temas políticos e sociais, sem dúvida importantes, mas que estão fora do foco do Tratado de Assunção.
Entre os avanços registrados estão o aprofundamento do acordo de comércio com a Colômbia, o compromisso de obter até dezembro uma declaração política para a finalização do acordo com a União Europeia, o prosseguimento dos entendimentos com a área econômica europeia (Efta), a assinatura de protocolo de cooperação e facilitação de investimentos e, ainda, o compromisso de firmar antes do fim do ano um acordo de compras governamentais entre os países-membros. Adicionalmente, refletindo a importância de projetos para ampliar a infraestrutura sul-americana, houve manifestação de apoio ao corredor ferroviário ligando o Atlântico ao Pacífico, como uma extensão da Hidrovia Paraná-Paraguai.
Do ponto de vista político, além do renovado compromisso de aprofundar a integração regional, os presidentes reforçaram o compromisso com o Acordo de Paris sobre clima, com o fortalecimento da democracia, com o multilateralismo (à luz da onda protecionista que poderá enfraquecer ainda mais a OMC) e decidiram ampliar a coordenação para o combate ao contrabando de armas e drogas nas fronteiras.
A Venezuela foi o tema dominante da reunião. O aprofundamento da crise política, social e humanitária nesse país foi amplamente discutido. Em razão da oposição do Uruguai e da Bolívia, ainda membro associado em processo de adesão como membro pleno do Mercosul, não foi possível adotar uma posição mais firme, como queriam alguns presidentes.
De qualquer forma, na declaração final do encontro ficou registrada a profunda preocupação dos presidentes com o agravamento da situação interna e a ameaça de conflito aberto. Os chefes de Estado pediram o fim da violência, a libertação dos presos políticos, o restabelecimento da ordem interna, do Estado de Direito e da separação dos Poderes. Os chanceleres dos quatro países assinaram uma nota em que, no contexto da cláusula democrática estabelecida pelo Protocolo de Ushuaia, a Venezuela foi convidada a dar início ao processo de consultas, em reunião prévia em Brasília, mesmo sabendo que seria improvável uma resposta positiva.
O Brasil assume, assim, a presidência do Mercosul num momento de grande sensibilidade para todos os países da região. Como coordenador do bloco até o fim do ano, o Brasil deverá manter a prioridade de fortalecer o Mercosul, fazendo-o voltar às suas origens, à redução de barreiras comerciais, mantendo-o engajado nas negociações externas, em especial com a União Europeia, aproximando-o da Aliança do Pacífico com novo e revigorado olhar para a Ásia. Com a retomada das prioridades iniciais do Mercosul na área comercial, caberá ao governo do Brasil não só dar continuidade, como concluir as negociações pendentes. O que significa reduzir ainda mais os obstáculos e restrições às trocas comerciais entre os países-membros no momento em que novas barreiras estão sendo criadas, assinar o acordo sobre compras governamentais e negociar o acordo político em dezembro com a União Europeia e com a Efta.
Com a deterioração da situação política depois da eleição para a constituinte e tendo o governo de Nicolás Maduro ignorado os pedidos para que essa assembleia não fosse instalada, inclusive pelas denúncias de fraude na contagem dos votos, os ministros do Exterior do Mercosul, reunidos em São Paulo na semana passada, decidiram aplicar a cláusula democrática prevista no Protocolo de Ushuaia e suspender politicamente a Venezuela do Mercosul até que se verifique o pleno restabelecimento da ordem democrática no país.
O regime autoritário venezuelano mantém-se graças a uma organização repressiva militar, policial e de inteligência controlada por oficiais cubanos. Embora reconhecendo a crescente radicalização política, o Brasil comprometeu-se a trabalhar para o restabelecimento da ordem democrática na Venezuela e a busca de uma solução negociada e duradoura em prol do bem-estar e do desenvolvimento do povo venezuelano. Eventual conflito armado, como ocorreu na sublevação em Valencia, no fim de semana, rapidamente controlada pelo governo, afetará o país e poderá ter graves consequências internas (já morreram mais de 120 manifestantes), com efeitos negativos concretos nos países limítrofes, em especial na Colômbia e no Brasil. Mais de 12 mil refugiados permanecem no Brasil.
A missão da presidência brasileira é ainda mais complexa quando se conhece a oposição pública de Caracas ao atual governo brasileiro. A volta do embaixador brasileiro a Caracas, depois de mais de oito meses de ausência de relações diretas entre os dois governos (a Venezuela retirou seu embaixador em Brasília), sinalizou ao governo Maduro uma atitude de diálogo e de interesse em conseguir uma fórmula de compromisso que resguarde todas as partes envolvidas.
Sem uma solução negociada, incluindo Cuba, dificilmente a ditadura venezuelana aceitará o dialogo com a oposição, mediada por representantes da comunidade internacional.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 08/08/2017.
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