No último dia 17 de abril fui pego pelo inusitado. Nas últimas semanas vinha escrevendo pelo norte da História, sobre a mudança do sentido que se atribui ao termo “natureza” com o passar do tempo ou a diferença de culturas. Escrevia especialmente dos choques de sentido produzidos pelo encontro da cultura tupi-guarani, que emprega uma noção de integração forte entre o humano e o natural, com as vertentes jesuítica e calvinista da concepção cristã – que foram concebidas inicialmente no contato com esses nativos no Brasil. Até mesmo as visões sobre a obra de Tarsila do Amaral estavam impregnadas por esta busca por um sentido novo trazido pelo choque com o costume da antropofagia.
Agora mudo radicalmente a aproximação. O texto que me levou a esta abordagem nova lida com algo que é sempre muito difícil para quem se treina para lidar com a História: o futuro. No lugar de reflexões em torno de experiências vividas, ele constrói seu caminho em torno de hipóteses sobre aquilo que vem pela frente – exatamente o material que o passar do tempo vai eliminando e que o historiador só trabalha depois da eliminação.
Mais ainda, trata-se de um escrito que, deliberadamente, é voltado para a construção de instituições de longo prazo. Propõe normas e atos. Raramente me aventuro nesta seara, pois afinal este tipo de propositura, embora importante, também conflita com os procedimentos para tratar o passado.
Apesar de tudo isso, desta vez julguei necessário abordar este texto. A razão central da decisão tem a ver com o tema que venho tratando – novos sentidos para o termo “natureza”. Pensando num futuro e não no vivido.
O documento foi escrito por um grupo de dirigentes dos 34 bancos centrais mais relevantes do planeta. Sendo assim, traz marcas muito fortes do linguajar econômico. O texto começa com um alerta para riscos sistêmicos que podem potencialmente causar “danos para a infraestrutura e a propriedade privada, decréscimo de produtividade e destruição de riqueza”. Ao mesmo tempo o comunicado anuncia uma possibilidade de ótimos negócios associada ao sucesso em contornar tais riscos. Mais ainda, convida para as tentativas de fugir do risco, ao afirmar que elas devem provocar uma “maciça realocação de capital”.
Tudo isso torna mais verossímil o cenário previsto. Quem se adaptar ganharia muito nos novos mercados conquistados; do outro lado, o destino previsto para quem falhar é cruel: “as empresas que errarem no ajuste vão simplesmente desaparecer”.
Imagino que uma pessoa com atitude empresarial e capacidade de ação, frente a um cenário como este, elaborado pelos maiores responsáveis pela gestão monetária do planeta, eventualmente não titubearia para aproveitar a oportunidade de ficar do lado bom do jogo e ganhar mercado dos concorrentes que vão desaparecer.
Mas o texto não fala apenas para empresários. Mostra que nações têm de lidar com o mesmo problema – mas jogando o mesmo jogo da aposta numa nova economia. Uma nação que aproveitasse a oportunidade teria, em escala muito ampliada, um destino inteiro pela frente. As que errarem teriam dificuldades.
O texto do comunicado não cita nações em particular. Mas todos os estudos indicam que o Brasil é, potencialmente, a nação com mais vantagens comparativas em todo o planeta para realizar com sucesso a passagem para a nova era.
Antes de entrar nos detalhes, convém notar um forte obstáculo cognitivo para o país chegar lá. Como bem disse o ministro Paulo Guedes, um das características atuais da discussão sobre o futuro no país vem a ser o de a nação estar vivendo um momento no qual se marginalizou tanto da discussão mundial que até mesmo suas elites estariam surdas para aquilo que se discute entre nações relevantes. Tudo acontece, mas não sabemos bem o que é.
No caso em pauta a dissonância entre o debate proposto pelo texto e o ambiente interno é imensa. Feito o alerta vamos ao texto, dando um novo passo. Até aqui tomei o cuidado de selecionar no comunicado os trechos que trazem mais claramente a linguagem econômica a que estamos acostumados. O fato de ela ser empregada por supervisores de bancos centrais ajuda a reforçar este sentido.
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Basta, no entanto, o título do comunicado para levar ao tema da dissociação cognitiva entre os debates mundiais e o brasileiro: “Carta aberta sobre os riscos financeiros relacionados ao clima”.
Já imagino gente gritando: “Pronto! O Caldeira virou hippie natureba!! Lá vem ele falando de um problema que não existe!!!”.
Uma reação como esta seria mais que justificada. Mas para saber por que é preciso ir um pouco mais adiante na espécie de construção conceitual que gerou, para os autores do texto, a associação entre “finanças” e “clima”. Ela se faz com o casamento entre a mais castiça linguagem da ortodoxia econômica com certos termos cunhados por militantes ecológicos. Antes de discutir o casamento, vale a pena entender a construção.
Todo o texto do comunicado de supervisores e dirigentes de bancos centrais (cuja redação final foi realizada conjuntamente pelos presidentes daqueles da França e Inglaterra, num indício de que nem o Brexit provocou diferenças de visão) gira em torno da passagem da economia existente (aquela para a qual foram cunhados os termos econômicos correntes) para outra economia futura, definida como “uma economia de baixo carbono”.
Esta passagem não é vista apenas como positiva, geradora de novas oportunidades de negócio. É afirmada também como futuro desejável para todas as economias. Por isso o texto traz uma série de sugestões para acrescentar ao conhecimento econômico tradicional métodos e conceitos desenvolvidos na formulação do conceito de “economia de baixo carbono”.
Conceitualmente o texto subordina (exatamente: subordina) a construção de cenários econômicos de longo prazo à questão do meio ambiente. A partir desta operação o comunicado passa a descrever uma série de mecanismos institucionais normativos que permitiriam uma avaliação permanente de riscos econômicos relacionados à transição para a economia de baixo carbono.
O comunicado sugere quatro medidas iniciais. A primeira delas seria a de criar sistemas de monitoramento que relacionem mudanças climáticas e riscos financeiros, capazes de propiciar ao mercado instrumentos de análise adequados para a avaliação de riscos, inclusive no que se refere a “resiliência a políticas relativas à mudança climática”.
A segunda é ampliar o acompanhamento dos riscos financeiros com melhorias que viriam do aperfeiçoamento do portfolio de indicadores produzidos pelos próprios bancos centrais. Sim: a sugestão é que essas instituições passem a produzir indicadores ambientais. A terceira é a integração de bancos de dados das 34 instituições, com o mesmo objetivo de melhorar a capacidade de avaliação dos riscos. Por fim é sugerido um aumento na capacidade de disseminar informações entre todos os agentes, mercados e empresas incluídos.
Ao fim e ao cabo a ideia é criar um sistema público de avaliação de riscos climáticos (imaginei uma espécie de agência central de classificação de riscos, aos moldes das existentes para títulos financeiros) para “dar ao mercado suporte adequado para avaliar riscos e oportunidades derivados das mudanças climáticas”.
Assim, caro leitor, “Mercados, riscos e oportunidades” estão sendo subordinados metodologicamente a “economia de baixo carbono” – o alvo central a ser perseguido para a construção de um futuro, na visão dos supervisores que estão propondo as medidas.
Não se trata exatamente de utopia nem caridade. Uma das mudanças mais claramente indicadoras da necessidade de seguir este caminho é aquela que vem ocorrendo no mercado de seguros. Como o próprio comunicado informa, os custos das seguradoras com pagamentos derivados de eventos climáticos foram multiplicados por cinco nas últimas três décadas. São riscos desta profundidade os que se querem evitar pela frente, e por isso mereceriam os novos instrumentos propostos.
Em suma: pensando numa economia do futuro, o documento vislumbra uma saída na conjunção de “atitude pró-mercado” com “atitude pró-ambiente”. E também na conjunção entre “oportunidades econômicas no longo prazo” com “sustentabilidade ambiental”. Em torno dessas identidades o comunicado vai propondo seu completo sistema de monitoramento.
O objetivo do sistema é claro: desenhar uma nova distribuição de prêmios e punições econômicas, beneficiando ainda mais aqueles que tiverem a capacidade de realizar a transição produtiva e tornando difícil a vida daqueles que insistirem no modelo atual.
E daí com o Brasil?
Embora seja apenas um simples cidadão sem acesso a informações mais detalhadas do governo, tenho a impressão que o país anda fazendo uma pesada aposta na suposição de que “atitude pró-mercado” e “atitude pró-ambiente” devem ser pensados como posições antitéticas absolutas. Que uma impediria a outra. Que as duas atitudes não se misturam e não devem ser misturadas.
Na comparação desta concepção que tenho sentido com o caminho proposto pelos supervisores e dirigentes de bancos centrais de todo o mundo, texto, fica a pergunta: e se as coisas mudarem na direção apontada pelo comunicado? E se o futuro econômico estiver numa economia de baixo carbono, numa nova relação entre “mercado” e “ambiente”?
O documento dos dirigentes de bancos centrais é uma indicação para governos e governantes. Alerta para o fato de que uma trama de atitudes institucionais globais está sendo unificada numa determinada direção. Pela amplitude do grupo e das instituições envolvidas, traz proposições coerentes.
Para meu olhar de cidadão basta isso para me perguntar: estaria o Brasil fazendo bom investimento no futuro ao desmantelar todas as pontes que levam ao caminho da identidade entre “mercado” e “meio ambiente”?
O pressuposto desta ação é o de que posições ambientais seriam trava para o crescimento de mercados – sua remoção traria desenvolvimento. Enquanto isso o comunicado sugere que seria exatamente destas travas que nasceria uma nova economia – capaz de colocar na falência a atual economia de alto carbono.
Que o leitor responda: andamos no caminho de “mais mercado”, como prometem os defensores da dissociação, ou naquele de perdermos a transição e ficarmos apenas um mercado sucateado, de alto carbono, com perspectivas cada vez menores de passar pelo crivo pesado de sobrevivência futura que o documento assinala?
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Posso apenas acrescentar uma sensação pessoal, que não chega a ser uma resposta. Caro leitor: você e eu nos comunicamos sem a intermediação do secular caderno de papel impresso que marcou a atividade jornalística por tantos séculos. Por muitos anos ouvi de colegas em redações de mídia impressa frases de desprezo pela concorrência da eletrônica. Aqueles que as proferiam tinham grandes certezas no valor da tradição. Deu no que deu.
Por isso nunca deixo de notar certos sinais que anteciparam o processo. Décadas atrás o valor de mercado da Google passou a ser um dos mais altos do mundo – e a empresa só dava prejuízos.
Dirá o leitor: isso não acontece com a produção em geral. Então me ajude avaliando o seguinte quadro de mercado de um bem de consumo muito material, o valor de mercado de dois fabricantes de automóveis, comparado com a respectiva produção.
A maior produtora de veículos no mundo é a General Motors; os últimos dados mundiais disponíveis de produção são os de 2017: 7,8 milhões de unidades. Graças especialmente a este volume, o valor de mercado das ações empresa chegou a 56, 35 bilhões de dólares. Já a Tesla fabricou 350 mil veículos elétricos em 2018; no final deste ano seu valor de mercado era de 45,67 bilhões de dólares.
Por que uma vale quase tanto quanto a outra, apesar da brutal diferença nas quantidades produzidas (e até das oscilações de mercado, já que o valor da Tesla caiu em 2019 para 29 bilhões de dólares, devido a dificuldades de produzir tudo que o mercado demanda)?
Quem pensou em “capacidade de produzir para a economia de baixo carbono” está bem perto da resposta. Já quem não acredita na correlação entre “mercado” e “natureza” pode simplesmente desdenhar o dinheiro que as pessoas estão investindo na Tesla ou os comunicados de bancos centrais que apontam a correlação. Mas há futuro em desdenhar de um futuro?
Atitudes como esta ajudam, por exemplo, a explicar por que a Tesla não demonstrou até agora o menor interesse num mercado no qual as possibilidades de produção da energia limpa que movimenta seus veículos são as maiores do mundo – ou porque fabricantes de carros que são quase lixo tecnológico ainda conseguem arrancar subsídios para produzir tal espécie de artefato no Brasil.
Admitamos que o modelo da separação radical entre “produzir para o mercado” e “conservar o ambiente” seja o dominante no Brasil – e esteja sendo reforçado. A questão que o comunicado coloca vem a ser de que talvez esta não seja uma boa maneira para pensar as relações entre “mercado” e “natureza” num determinado modelo de futuro. Então a pergunta se repete em escala maior. Estaríamos apostando conceitualmente num país 1.0 – num momento em que surgem desenhos de uma economia 2.0 na qual poderíamos ir muito bem?
Fonte: “Gazeta do Povo”, 27/04/2019