*Os últimos serão os primeiros: o caso do produtivo agronegócio brasileiro
Rachel Borges de Sá e Victor Candido
Como todos estão cansados de saber, 2015 foi um ano mais do que perdido para a economia brasileira. Observamos o PIB contrair-se mais de 3,8%, refletindo desastres por todos os lados; serviços registraram queda de 2,7%, indústria 6,2%, comércio varejista 8,6% (incluindo automóveis e materiais de construção) [1]. Para onde quer se olhe, aquele sinal negativo nos acompanha. Com exceção de um setor, o da agropecuária. Este setor foi o único a registrar aumento (sim, sinal positivo) no ano de 2015, apresentando 1,8% de crescimento. Diante de um cenário marcado pela desaceleração chinesa e baixa nos preços de commodities, além dos impactos de uma tremenda seca, há de se perguntar como isso é possível. Mágica? Falcatruas nos números? Esquema com os donos do dinheiro grosso? Não, boa parte remete a uma resposta pouco usual na economia brasileira: produtividade. Claro que não podemos subestimar aquela ajudinha da depreciação cambial de 2015, mas deixemos isso para outro artigo.
Há anos o tópico produtividade chama atenção aqui abaixo dos trópicos, e foi nesse contexto que nasceu o conceito conhecido como heterogeneidade estrutural [2]. Tal conceito define a coexistência de setores de distinto dinamismo, e, portanto, níveis de produtividade diferentes, em determinada economia; em outras palavras, quando um setor “moderno” convive com um “atrasado”. Por exemplo: agricultura familiar com indústria aeroespacial. Ao caracterizar esse fenômeno, teóricos da CEPAL [3] chamavam atenção ao processo de desenvolvimento da América Latina, onde um setor menos dinâmico, o primário exportador, coexistia com um de maior dinamismo (e, portanto, produtividade elevada), o industrial. Porém, à tal realidade acrescia-se um fator: o setor mais dinâmico dependia do menos dinâmico para obter recursos, gerando uma estrutura econômica caracterizada pela falta de investimentos e fadada ao subdesenvolvimento na ausência de mudanças estruturais.
Se esta explicação pareceu um pouco confusa, não se preocupe, pois ela é. Aliás, se ela também pareceu um pouco fora do contexto com a informação dada no primeiro parágrafo, também é porque é. Porém, quando o conceito de heterogeneidade estrutural foi criado, em meados dos anos 1960, tal afirmação fazia sentido. O Brasil, assim como a maior parte de seus vizinhos latino-americanos, havia crescido empurrado por grandes latifúndios cultivando de açúcar a café, de leite a borracha. A escravidão, a forma de trabalho mais cruel e de menor produtividade existente, era realidade para a geração passada, e o setor primário exportador não passava de um atraso – a menos em termos de avanços tecnológicos. A frase “a vocação do Brasil é agrária” era repetida por diversos cantos do país, sobretudo nas altas rodas do poder. Ao mesmo tempo, a indústria recém-instalada por GV, Juscelino e simpatizantes da ISI [4] gostava de exibir seus mínimos traços de modernidade, fazendo dos novos parques industriais o reflexo do futuro, e uma promessa de um Brasil diferente no longo prazo.
Atualmente, porém, os papéis se inverteram. Grande parte da indústria brasileira é por muitos considerada sucata (com poucas exceções, como a farmacêutica e a aeronáutica, além da extrativa e de energias alternativas – é claro), competitiva apenas diante de países como nossos “fortes” companheiros do Mercosul. Já o agronegócio possui reconhecimento internacional, chama atenção para a tecnologia de ponta, inserindo-se em modernas cadeias produtivas. Segundo o atlas da complexidade econômica [5], estudo focado em analisar as capacidades produtivas de cada país, o Brasil tem enorme vantagem com relação às principais commodities que produz, figurando com as maiores pontuações globais nesse quesito.
Hoje, não produzimos commodities pela dinâmica de ser um país pobre ou atrasado, e sim porque somos um país que domina a informação e tecnologia necessárias para plantar e colher essas commodities. Como diria um pecuarista anedótico destacado pela economista Vera Thorstensen recentemente: “há mais tecnologia na asa desse frango do que na de um avião da Embraer”. Ou mesmo um agricultor anedótico lembrado por Otaviano Canuto em mesma ocasião: “você acha que é simples? Há mais de 15 tipos de sementes de soja plantadas apenas nesse pedacinho de terra que você pode observar”.
É claro que é importante considerar a ainda existente diferença de produtividade (ou seja, heterogeneidade estrutural) dentro do próprio setor, em que o moderno agronegócio contrasta com produtores em situação de extrema pobreza, que utilizam técnicas e insumos de baixíssima produtividade [6], ou mesmo com a pecuária bovina extensiva – cujos níveis de produtividade ainda figuram aquém do desejado para o maior rebanho do mundo. Não obstante, não há como negar: quem aí não queria estar plantando soja ou vendendo ração de frango, e respondendo pelo único número positivo do PIB?
E agora perguntamos. Como isso aconteceu? Acredito que meu rascunho inicial desse parágrafo seja tão simples quanto eficaz em explicar o sucesso de nossos ovos, carnes e mudas de soja:
De fato, parece uma receita também simples e eficaz. Investe-se (entenda-se, o Estado) em pesquisa, gerando inovações tecnológicas que resultem em aumento de produtividade; ao mesmo tempo, deixa-se o mercado adaptar-se sozinho, sem quaisquer tipos de proteção ou subsídios excessivos, indiretamente incentivando a concorrência e a “corrida para o topo”; por fim, deixa-se que frutos sejam colhidos, e utilizam-se retornos que voltem em forma de impostos para novamente investir-se em educação e pesquisa, fechando um ciclo virtuoso. É importante ressaltar que o investimento em educação e pesquisa também gera importantes externalidades positivas para o país no campo social, como o significante impacto de qualidade de educação na desigualdade de oportunidades, e consequentemente, de renda. Portanto, difere-se do investimento direto setorial, cujas externalidades limitam-se ao retorno privado; como injetar capital na maior produção de carne, por exemplo.
Porém, como sempre, nem tudo são rosas. Uma expressão ouvida cada vez mais em rodas de economistas, agropecuaristas e simpatizantes é que “Somos muito produtivos sim. Da porteira para dentro”. Para você que não possui uma raiz caipira, explico. A porteira é a porta da fazenda, e o resto é o que deixa de depender do fazendeiro. O que isso significa? Significa que o sucesso de nosso agronegócio para exatamente no plantar e colher. A partir do momento em que saímos dos limites da porteira e passamos e depender de todo o resto, a coisa já muda completamente de figura.
“Da porteira para fora” é onde reside o imenso desastre do Brasil: a completa falta de infraestrutura – de ferrovias à portos, de logística ao armazenamento. Ao sair de uma fazenda no Mato Grosso, por exemplo, um caminhão demora dias por estradas de pistas simples, com traçados pensados há 40 anos para veículos leves e não para o tráfego de carretas. No porto, falta capacidade de armazenamento, o que leva a filas de caminhões parados, uma vez que os próprios caminhões são usados como “armazéns sobre rodas”. Somado a tudo isso, ainda existe a espera dos navios para atracarem na doca do porto, onde cada minuto se traduz em maiores custos. O resultado é triste. No final de 2014, era mais barato levar soja do porto de Paranaguá para a China, do que o trecho terrestre entre Cascavel e Paranaguá [7], ambas cidades no mesmo estado, o Paraná. Um completo absurdo.
Se apesar dos custos imensos da porteira para fora, ainda somos competitivos (e muito), pense o quanto mais seríamos caso a infraestrutura estivesse próxima do recomendado? Geraria aquilo que nos referimos anteriormente como externalidades (do inglês, spillover effect), ou em bom português: efeito derramamento, que nada mais é do que o efeito positivo de um setor sobre o outro. A nova rede de transportes geraria redução de custos para todos ao seu redor, inclusive a indústria convencional. Exemplos bem sucedidos incluem as antigas ferrovias, que na metade do século XIX tornaram não somente a América Latina parte relevante do comércio mundial, como também contribuíram para aGolden Age de desenvolvimento econômico de países como o Brasil.
É evidente que nossa explicação para o sucesso da agropecuária no Brasil é simplificada, e diversos elementos devem ser levados em consideração – como o tipo de atividade que gere maiores externalidades positivas ao resto da economia – antes de concluir-se, erroneamente, que esse artigo defende o fim da indústria de manufaturados no Brasil. O fato é que o Brasil superou a dualidade entre a indústria produtiva e o campo improdutivo tão discutida pela antiga CEPAL e ilustrada pela famosa definição de F. List de “deterioração dos termos de troca no longo prazo”. O Brasil do século XXI apresenta outro paradoxo CEPALINO: um campo extremamente produtivo e uma indústria que patina e perde competitividade ano pós ano. Lidar com esse importante paradoxo, tirando o melhor proveito deste, deve ser prioridade no planejamento da política industrial nacional e do desenvolvimento econômico sustentável do país.
Notas:
[1] Dados atualizados IBGE http://saladeimprensa.ibge.gov.br/noticias?view=noticia&id=1&busca=1&idnoticia=3111
[2] Bielschowsky, R. (2009), Sixty years of ECLAC: structuralism and neo-structuralism http://www.rrojasdatabank.info/RVI97Bielschowsky.pdf
[3] Comissão Econômica para América Latina – instituição de pesquisa e desenvolvimento de políticas públicas ligada à ONU.
[4] Industrialização por substituição de importações – processo pelo qual a industrialização se dá a partir do desenvolvimento de indústrias nacionais que produzam o que até então é importado e cuja produção é destinada ao mercado doméstico.
[5] http://atlas.cid.harvard.edu/
[6] HETEROGENEIDADE ESTRUTURAL NO SETOR AGROPECUÁRIO BRASILEIRO: EVIDÊNCIAS A PARTIR DO CENSO AGROPECUÁRIO DE 2006, IPEA, 2012. (http://www.econstor.eu/bitstream/10419/91398/1/719074754.pdf)
Fonte: “Terraço econômico”, 9 de março de 2016.
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