Premiar policiais que tenham o melhor desempenho na tarefa de reduzir a criminalidade é medida eficiente? Ou, desdobrando a questão, a implantação da meritocracia na esfera policial é estratégia adequada para se alcançar a ansiada meta de redução de crimes nas grandes cidades? A princípio, a resposta é positiva, na medida em que a cultura meritocrática – como conceito que visa valorizar e recompensar os perfis e conjuntos que atingem resultados graças aos seus valores, competências e qualidades – é vista com simpatia em todos os espaços do trabalho, ganhando força na administração pública e não apenas na esfera dos negócios privados, onde o mérito pessoal adquire maior importância. O governo de São Paulo, impelido pela onda crescente de violência que se espraia no território que abriga o maior contingente populacional do país, anuncia a decisão de instituir um bônus-prêmio aos policiais civis, militares e técnico-científicos que obtiverem diminuição nos índices dos crimes contra a vida e o patrimônio, como homicídios, latrocínios e roubos. A capital registrou, no primeiro trimestre, um aumento de 18% no número de homicídios dolosos (com intenção de matar) em relação ao mesmo período do ano passado, enquanto, pelo oitavo mês consecutivo, os números da violência aumentaram em comparação com os meses do ano passado.
Apesar da aparente aprovação, conquistada por um conceito que valoriza o mérito pessoal, não há como deixar de examinar outros posicionamentos que poderão gerar ruídos na implantação da sistemática e contribuir, até, para uma reversão de expectativas. Comecemos pela lembrança de que a segurança pública é uma missão do Estado e, como tal, deve ser responsabilidade dos aparatos policiais sob sua égide e organização. Emerge, nesse caso, a noção do Todo sobre as partes, o conjunto sobre um ou outro ator individualmente. A premiação de partes isoladas corre o risco de fracionar o espírito de corpo, particularmente nas frentes que operam os serviços públicos, cujo ânimo competitivo difere do que habita os empreendimentos privados. Ademais, é oportuno lembrar os conceitos clássicos que explicam a integração de um servidor público ao seu trabalho. Que poderes são capazes de torná-lo mais eficiente? O poder remunerativo, sem dúvida, aparece em primeiro lugar. Um bom salário é a primeira condição para um servidor concordar com as tarefas que lhe cabem. Ao lado da remuneração, há outros meios que contribuem para o servidor se engajar e participar de forma plena nas tarefas profissionais: os poderes normativo e coercitivo. Ou seja, a norma, o princípio, os valores e a possibilidade de ser punido, caso não cumpra bem a missão, funcionam como alavancas do ajustamento de profissional ao ambiente de trabalho.
Analisemos, agora, a fragilidade do poder remunerativo. Um soldado de primeira classe da PM em São Paulo ganha R$ 1.158,45; o de segunda classe, R$ 1.020,15; os sargentos, entre R$ 1.622 a R$1.769; um tenente, faixa de R$ 2.250 a R$ 2.512. Imagine-se uma família com 2 filhos. Como um policial pode sustentar sua família com esse parco salário, mesmo considerando a contribuição da mulher? Torna-se evidente que o conforto material do policial, garantido por remuneração digna, é fundamental para o desenvolvimento de um saudável espírito de corpo. A baixa remuneração abre as comportas para “bicos”, trabalhinho extra para o sustento familiar. Sabe-se, por outro lado, da grande rivalidade entre as Policias Civil e Militar de São Paulo. Revezam-se os secretários de segurança, mas as querelas internas continuam. Falta sinergia entre os dois sistemas. Cada qual age de maneira independente. Portanto, o poder normativo que deveria juntar as Polícias Civil e Militar na mesma régua de valores está capenga. Um esforço deve ser empreendido para diagnosticar os pontos de atrito e preencher as lacunas que separam as duas forças. Persistem as criticas a respeito de sobrecargas de serviços (que demandam escalas extras e expansão das operações), para as quais se reivindicam melhores condições ao exercício da atividade policial, a partir de salários, treinamento especializado, aumento dos efetivos e recursos tecnológicos, condizentes com a urgência que a segurança pública requer.
Em face de uma planilha locupletada de demandas, que se tornam a cada dia mais prementes face aos índices assustadores da criminalidade, o sistema de premiação às performances individuais ameaça ser fator de competição esganiçada e predatória entre grupos, contribuir para expansão de abusos de autoridade e, até, acender os ânimos corporativistas dos conjuntos policiais. Se o cidadão comum já tem receio do policial militar- fugindo dele por temer atitude/ação agressiva – imagine-se o distanciamento que dele manterá sabendo que, nas ruas, há um grupo de “justiceiros” dispostos a banir os eventos criminosos, a qualquer custo. O costume de premiar policiais já existe entre nós. Pernambuco, Minas e Rio são as referências. Mas os efeitos são distintos. Em Minas, o plano lançado em 2008 resultou em queda nos três primeiros anos, mas em 2011, a situação se inverteu. A taxa média mensal de 20,8 de crimes violentos por 100 mil habitantes, em 2010, pulou para 36,4 no ano seguinte. Em Pernambuco, a queda no índice de homicídios foi de 18% em 2010. Argumenta-se também que países da Europa, como a Alemanha, conseguem bons resultados com a política de bônus a policiais. Atente-se, porém, para a cultura de ordem nas Nações mais civilizadas.
Ali, a lei é rigorosamente cumprida, os sistemas policiais agem de maneira sintonizada, os aparatos tecnológicos são refinados e trabalham de maneira tempestiva, dando cobertura imediata à caça dos criminosos. Aqui, a lei do menor esforço se alia à lei da maior vantagem para, juntas, darem abrigo ao oportunismo e à malandragem. Com direito a ver na cena do tiroteio a figura do mocinho marcando no cabo do fuzil o número de bandidos abatidos.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 02/06/2013
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