“Sem medo de ser feliz?” Aécio Neves, o bem avaliado governador mineiro, que acaba de deixar o posto para se candidatar ao Senado, no surpreendente discurso por ocasião do lançamento de José Serra à Presidência da República, decidiu não apenas responder ao slogan de Lula em 2002, mas fazer um repto: “Sem medo de resgatar o passado.” O neto de Tancredo, em oratória inflamada, deixou claro seu posicionamento, livrando-se de insinuações que davam conta de postura tíbia ante a candidatura do governador paulista. Por trás da desconfiança, uma agenda pontilhada de encontros e gentilezas entre ele, o presidente Luiz Inácio e a candidata Dilma, em que a cordialidade teria dado lugar à amizade pessoal.
Sob elogios recíprocos, Aécio foi o primeiro a engatar a ideia do pós-lulismo, contrastando com o anti-lulismo apregoado por companheiros tucanos. Ainda como pano de fundo, registrava-se um contencioso histórico, atrelado à versão de resistência dos mineiros a mais um candidato paulista no plano federal. O sonho de resgatar o legado de Tancredo, arrebatado pelo destino, ainda permanece aceso nas Minas Gerais, unidade de forte tradição política.
Os tucanos viveram um período como aves sem rumo. Sem discurso e sem estratégia. O comício de Brasília lhes mostrou a biruta. Passaram a sentir a rota do vento. Mais que isso, a ameaça de olhar para o retrovisor, recorrente na liturgia petista, pairava sobre o tucanato. Pois bem, os fantasmas saíram das tumbas e, para decepção do PT, não assustaram ninguém. Ao contrário, receberam aplausos.
O autor da façanha da “volta ao passado, sem medo de ser feliz” foi ele, Aécio Neves. Resgatou a temida pauta da comparação entre os ciclos FHC e Lula, aceitando o jogo que o PT quer e o PSDB não pretendia jogar. A peroração abrigou quesitos que o petismo escreveu na lousa durante esses sete anos e cinco meses do governo Lula, a começar pela execração da privatização e o endeusamento da estatização. O mineiro acusou o petismo/lulismo pela “autoproclamação da própria bondade”. O exclusivismo messiânico, expresso na construção “nunca na história deste país”, que permeia o discurso da atual administração, foi questionado.
De fato, a insistência com que o petismo procura separar passado e presente tem sido responsável pela acidez com que os adversários se tratam. Indignados, os tucanos decidiram entrar na arena dispostos a defender a ideia de que as “virtudes” da era Lula se repartem com o ciclo FHC. Ou, se tentarem ser mais exatos, se devem, ainda, ao alicerce fincado no governo Itamar Franco.
Como se observa há tempos, cada ente (partidos, governantes) tem procurado impor seus pontos de vista. É inegável que o ciclo Lula é mais farto de dados e programas. Se exibe balanço mais positivo, isso também se deve às circunstâncias externas e à arquitetura do Plano Real. A privatização da era FHC, com exemplos aprovados nas áreas de telecomunicações e de siderurgia, passou a ser estigmatizada. Alguns teimam em pintá-la com o verniz do neoliberalismo. O PT não reconhece o mérito por conta da cultura “nós e eles” que semeia. A visão separatista acirrou os ânimos no meio da sociedade. O “exclusivismo” ganhou ares de arrogância.
A isso se soma a guerra das trombetas. A de Lula tem sido mais tonitruante. O conceito do Estado forte, por sua vez, que se imaginava arquivado, volta à tona. Na verdade, a crítica tem como foco o Estado como abrigo do mando partidário. Basta lembrar que o PMDB elegeu, em 1986, 21 de 22 governadores de Estado, implantando a estrutura mais capilar dos nossos dias. A estratégia ainda hoje lhe dá frutos para continuar a ser a maior sigla. O PT quer o mesmo. Por isso, Aécio acusa o aparelhamento do Estado (há 22 mil cargos na máquina federal). Se alguém esperava o matreiro mineiro falando pouco para não dizer nada, ouviu uma raposa disposta a enfrentar briga de cachorro grande. O repto para o duelo foi aceito.
José Serra dá sinais de que vai pegar o lenço vermelho jogado sobre a arena. A comparação, infeliz, aliás, que faz entre Celso Pitta e Dilma (lançados por Maluf e Lula, respectivamente) borra a bandeira branca da paz, que desfraldou ao exaltar o diálogo nacional, a paz social. Como aperitivo da acidez, Lula, vez ou outra, bagunça o coreto ao dar estocadas no Judiciário ou pinça a velha luta de classes no discurso de palanque. Mas, no final das contas, a que levarão mordidas e assopros de uns e outros? Esse tipo de embate gera entusiasmo? Não. O discurso político, embalado por conceitos abstratos, atinge apenas segmentos racionais. Isso posto, aduz-se que temas como tamanho do Estado, privatização, estatização, estabilidade econômica, comparação de ciclos fazem parte da planilha mais acomodada à cabeça do que ao estômago. Agitarão plateias já fiéis aos dois lados e assíduas ao campo de lutas. As margens não serão induzidas por ecos que chegarão, tênues, a elas.
O que se deve esperar dos candidatos é uma densa pauta sobre questões de alta prioridade. Campanha negativa não rende voto. Mas, como se pode observar nos últimos dias, a campanha nem começou e a agressão sobe de tom. O acirramento decorre das deficiências de uns ou visão errática de outros, da ausência de ideias e programas e, ainda, da percepção capenga de que o adjetivo gera mais eco que o substantivo. O País quer ver mudança também no campo eleitoral. Não quer nova campanha do medo. É inimaginável que se perca tempo (e esforço) com batalhas em torno de questões bizantinas do tipo: “Quem pode mais?” Afinal de contas, que projeto de país cada candidato defende? Que áreas precisam de urgentes reformas? Em alguns anos, o Brasil até poderá conquistar a posição de quinta maior economia do planeta. Mas a mentalidade política, convenhamos, deixa a desejar.
(“O Estado de SP” – 18/04/2010)
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