O castigo – ou, em linguagem jurídica, a punição e a pena – guarda relação com o crime. Mais especificamente, a relação se faz segundo um critério de proporcionalidade e razoabilidade, não sendo admitido como racional que uma pena em muito exorbite o ato cometido. Em casos desse tipo, tal condenação pode ser dita injusta.
A injustiça, no entanto, pode ser ainda maior se o castigo não guardar relação alguma com o ato que o ensejou. Ou seja, saltaria à vista como irracional que punição e pena não guardassem relação com a ação que está em sua origem. Não se trata aqui de uma desproporcionalidade, mas de pura e simples ausência de relação, o que significaria dizer que pena e punição são claramente injustas. Os que sofrem tal castigo deveriam, pois, ser considerados injustiçados.
Em grandes cidades e metrópoles brasileiras estamos, cada vez mais, observando “injustiças” que têm como objeto empreendedores que enfrentam adversidades dessa natureza. Têm-se multiplicado as notícias sobre imóveis em construção, ou até mesmo acabados, que simplesmente têm suas obras embargadas ou não podem entrar em funcionamento por decisão de prefeituras ou de ações do Ministério Público (MP). Seguiram tudo o estipulado pela legislação em vigor e, de repente, se veem em situação de suposta irregularidade.
O fato mais recente que tem chamado a atenção da opinião pública se refere a um shopping center na cidade de São Paulo (JK Iguatemi) que, pronto, não pode funcionar. Casos assim não são algo novo, mas se inscrevem em longa lista que pode envolver os mais diferentes tipos de empreendimentos imobiliários, em cidades maiores ou litorâneas.
Evidentemente, estamos dando como pressuposto que todas as normas foram seguidas, conforme a legislação em vigor. Um grande empreendimento imobiliário deve passar por uma série de etapas, como autorizações da prefeitura, seguindo o Plano Diretor da cidade, que, por meio de uma secretaria ou órgão especializado, dá o sinal verde para que a obra comece. Há, no entanto, condicionantes impostas, que exigem a realização de obras viárias, necessárias, por exemplo, para a circulação de veículos naquela região.
Autorizações ambientais, municipais ou estaduais, conforme o caso, são igualmente necessárias, seja para a implantação do projeto, seja para a realização das condicionantes, cada uma delas burocraticamente vinculada a um órgão estatal. Ademais, o MP pode atuar em qualquer etapa do processo, inclusive em sua conclusão, segundo uma interpretação própria da lei, ou para determinar se essas várias regras e condicionantes foram observadas.
Hipoteticamente, vamos considerar que o empreendedor tenha obedecido a tudo o que lhe foi estipulado. Nesse caso, o empresário terá agido de boa-fé, atento à lei e ciente de suas consequências. Os que não o fizerem devem, certamente, ser punidos, o seu caso se inserindo na relação e na proporcionalidade entre o ato e sua punição, entre o crime e seu castigo. Devemos igualmente afastar, por ideológica e insensata, qualquer consideração do empresário como “especulador” e “irresponsável”, por ser nitidamente preconceituosa.
Acontece, contudo, que essas diferentes instâncias administrativas e estatais não atuam de forma coordenada e frequentemente seguem critérios distintos. Individualmente, poderíamos estar de acordo com a secretaria responsável pelo Plano Diretor, com o órgão ambiental, com o MP ou com qualquer outro órgão que atue nesse processo.
Outra, porém, é a realidade quando esses diferentes órgãos e instâncias, além de agirem descoordenadamente, seguem tempos completamente aleatórios. Por exemplo, se uma das condicionantes para o prosseguimento da obra implicar uma autorização ambiental suplementar, esta não deveria demorar um tempo indeterminado, que pode tornar todo o projeto inviável. Teria de haver um prazo fixo para a decisão, que não poderia ser postergado indefinidamente.
Da mesma maneira, as condicionantes da prefeitura devem ser claras e precisas, sob pena de a aleatoriedade tomar conta de todo o projeto. Igualmente, não deveria ter o MP a prerrogativa de embargar, a qualquer tempo, uma obra que tenha seguido todos os trâmites legais, segundo uma nova interpretação.
Imagine-se um empreendedor submetido a um emaranhado jurídico e administrativo desse tipo. O seu empreendimento fica submetido a completa insegurança, prejudicando o seu investimento, criando instabilidade para seus funcionários e demais trabalhadores. No caso de uma obra pronta, a repercussão social e economicamente negativa entra em cadeia de descoordenações, pois, por exemplo, lojas de shoppings não podem ser abertas, causando prejuízos a outros empresários. Empregos tampouco podem ser criados e, se já criados, seus trabalhadores se encontram em insegurança. Impostos também não são recolhidos, pois as novas lojas não podem começar a funcionar. Tome-se em conta, além de tudo disso, que a construção de um novo shopping leva em torno de cinco anos, sendo dois só de projetos, trâmites administrativos e as mais distintas autorizações.
O disfuncionamento é total. Os empresários submetem-se, então, a um verdadeiro calvário. A burocracia e as instâncias judiciais os encaram como infratores que devem ser submetidos a castigos e penas, embora os seus autores não se considerem pessoas que tenham incorrido em infração alguma. A situação torna-se particularmente insensata, pois se consideram injustamente punidos.
Na tradição bíblica, Jó sofre uma série de infortúnios sem ter jamais blasfemado contra Deus e sem nunca ter cometido nenhuma infração contra seus mandamentos. Será que é isso que está sendo imposto a empreendedores brasileiros, como se o Estado tivesse uma posição de tipo divino?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 07/05/2012
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