O governo acusa os bancos privados de cautela excessiva na oferta de crédito ao consumidor. Será mesmo? Será que há espaço para efetiva retomada do mercado de crédito no curto/médio prazo?
Pelas pesquisas trimestrais conduzidas pelo Banco Central e pelo comportamento dos spreads bancários vis-à-vis alguns de seus determinantes, como taxa Selic e taxa de inadimplência, as condições da oferta de crédito não parecem tão restritivas assim. Houve, certamente, momentos mais restritivos no passado recente, como em 2011.
Na verdade, a performance do mercado de crédito tem sido também afetada pelo baixo dinamismo da demanda de crédito. Com endividamento elevado, as famílias estão aparentemente desejando desalavancar. A magnitude e extensão do ajuste não estão claras, pois a inadimplência dos indivíduos em relação à sua renda anual não é baixa e está em alta. Assim, ainda está cedo para saber quando ocorrerá a volta cíclica do crédito.
De qualquer forma, para além de sua recuperação cíclica, o fato é que, sem ajustes estruturais no mercado de crédito, o espaço para avanços é modesto. Há alguns anos era comum argumentar que havia grande espaço para aumento do crédito a indivíduos no Brasil, principalmente crédito imobiliário. Não mais. O avanço do crédito a pessoa física nos últimos 10 anos foi expressivo. Era menos de 10% do PIB até meados de 2004, e em julho de 2014 estava acima de 26%.
O avanço não se deu apenas no segmento livre, mas também no direcionado – as principais categorias são crédito imobiliário e rural -, que tem taxas subsidiadas. O crédito livre atingiu 15% do PIB este ano, subindo quase 9 pp em relação a meados de 2004, enquanto o direcionado subiu quase 8pp atingindo 11% do PIB. O crédito direcionado cresceu proporcionalmente mais, o que não é um bom sinal.
Com o mercado bancário sofisticado, o crédito direcionado deveria ser apêndice, para corrigir falhas de mercado, e não o principal motor do crédito, como agora. Os critérios para expansão dos créditos livre e privado diferem. Enquanto, no primeiro, os agentes privados internalizam o risco esperado, como a inadimplência, e seus respectivos custos, no direcionado parte do risco é transferida para terceiros. Riscos para sociedade são, portanto, elevados diante de crescimento exagerado do crédito. Exemplo disso ocorreu nos EUA com a crise das empresas garantidas pelo governo, Fannie Mae e Freddie Mac, que levou à crise do “subprime”.
As dinâmicas dos segmentos livre e direcionado diferiram nos últimos anos, conforme a agenda de política econômica se alterou.
Até 2008, ano da eclosão da crise global, foi o crédito livre que puxou o movimento, tendo atingindo naquele ano 13% do PIB ante 6% em 2001. O segmento foi bastante beneficiado pelas medidas estruturais conduzidas no início da década passada, que visavam basicamente a redução do risco no mercado de crédito. A oferta expandiu, trazendo ganhos de produtividade ao setor bancário e, portanto, a redução de spreads. A demanda, assim, reagiu. Não se tratou, portanto, de aumento de crédito via estímulo direto ao consumo, mas sim por redução do risco da operação. Exemplo importante dessa agenda foi a criação do crédito consignado, que reduziu as taxas de juros e expandiu o financiamento do consumo.
No entanto, como resposta à crise global de 2008 e, posteriormente, como instrumento de estímulo direto à demanda agregada, o crédito direcionado passou a ser o líder na expansão do endividamento das famílias. Vale citar que até o final de 2008 essa modalidade pouco cresceu, representando apenas 4,5% do PIB; ou seja, mais que dobrou como proporção do PIB desde 2008. Enquanto isso, o crédito livre pouco cresceu desde 2008 (2pp) e vem lentamente encolhendo como proporção do PIB desde o final de 2012.
É provável que o aumento da oferta de crédito direcionado tenha sido excessivo e seja um dos fatores limitando o crédito livre. Trata-se de crédito subsidiado que acaba concorrendo pelo bolso do consumidor, além de pressionar o custo do crédito livre, por conta de subsídios cruzados. O resultado final é o desestímulo à demanda de crédito livre.
O fato é que somados os dois segmentos, o crédito bancário total para pessoa física já supera 26% do PIB. Como proporção da renda dos indivíduos, a taxa é de 45%, sendo que o comprometimento da renda anual com serviço da dívida está em 21%, segundo o Banco Central.
Tomando o Chile como base de comparação, por ser referência de economia moderna na América Latina, o endividamento total das famílias estava ao final de 2013 em 57% da renda anual disponível dos indivíduos, segundo o Banco Central de Chile. Levando-se em consideração apenas o crédito bancário, esta cifra cai para 45%, que é similar à brasileira, com a diferença que o Brasil considera a renda total e o Chile utiliza um conceito mais restrito, que é a renda disponível (líquida de impostos).
O problema é que o Chile tem PIB per capita bem superior ao Brasil, algo entre 39% (em US$) e 56% (por paridade do poder de compra), o que significa maior capacidade de alavancagem das famílias. Outro ponto crítico é que as taxas de juros finais são bem mais baixas: foram de 13% aa em média em 2013 contra 25% no Brasil (36% para crédito livre e 7% para direcionado). Desta forma, enquanto os consumidores chilenos precisaram guardar 14% de sua renda anual disponível para honrar o serviço da dívida em 2013, os brasileiros tiveram que poupar 21% da renda anual. Vale citar que, nos EUA, esta razão estava em 24% sobre a renda disponível antes do estouro da bolha imobiliária em 2008.
O quadro, portanto, é de acomodação do crédito (como proporção do PIB ou da renda dos indivíduos) por um bom tempo, por restrições do lado da demanda dos indivíduos, mesmo superada a atual “ressaca” do crédito.
Do lado da oferta, dados os limites de funding para crescimento do crédito direcionado, ainda mais relevantes com a implementação do acordo de Basileia 3, avanços da oferta de crédito deverão vir do segmento livre. Tentativas de inflar ainda mais o crédito direcionado poderão sair caro, pelo risco de passivos intratáveis adiante.
Avanços do crédito livre dependerão, por sua vez, de uma agenda de longo prazo que diminua o risco e o custo das operações, de forma a reduzir os spreads bancários. Assim seria possível os indivíduos elevarem seu endividamento, mas sem pressionar sua capacidade de pagamento do serviço da dívida.
Segundo cálculos de especialistas, a variável-chave para redução do spread é a redução do crédito direcionado, pois o subsídio cruzado do crédito direcionado seria responsável por até três quartos do spread do crédito livre. O subsídio cruzado, principalmente presente nos bancos públicos, acaba influenciando os spreads do crédito livre como um todo, dado o importante papel dos bancos públicos na formação de preços no mercado de crédito.
Fica então uma importante agenda para os próximos anos, como condição para a retomada do crédito: medidas estruturais para redução de spreads e (ironicamente) redução do crédito direcionado. De quebra, aumenta-se a eficácia da política monetária, contribuindo para redução da Selic.
Quem sabe os indivíduos, e assim os bancos privados, poderão ficar menos conservadores.
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