As eleições no Chile suscitam entre nós uma variedade de reações e de especulações desencontradas. Como se os analistas brasileiros estivéssemos em busca de um eixo explicativo satisfatório para o alcance político e simbólico do processo eleitoral. É sintoma de que seus efeitos não foram devidamente decantados. Mais cá do que lá. Por várias razões, algumas objetivas, outras menos.
A mais óbvia é a pouca familiaridade com os erros cumulativos da Concertación – a coalizão política derrotada, dominada pela Democracia Cristã e pelo Partido Socialista, que se alternaram no poder nos últimos 20 anos. Há razões menos objetivas. Uma é a opacidade das lentes através das quais enxergamos o processo eleitoral no Chile e as questões estratégicas que definem os alinhamentos entre esquerda e direita. O sistema de filtros que usamos são obstruídos por uma leitura pautada por nossa própria agenda eleitoral. Outra razão é o impulso de transplantar experiências históricas e regras do jogo que valem num contexto, mas não em outro. A imprensa na semana tratou de questões válidas, plausíveis, mas que não iluminam o que está em jogo, cá e lá. Exemplos: a popularidade da(o) presidente, em torno de 81%, é ou não transferível? Fala-se de Michelle Bachelet, mas pensa-se em Lula. Qual o peso da ruptura da coesão interna da Concertación como fator de derrota? Fala-se dos candidatos à esquerda da Concertación, especialmente de Enriquez-Ominami, mas pensa-se em Ciro Gomes (ou Marina Silva).
Convém iniciar a análise por uma constatação: os resultados eleitorais indicam muito mais do que um processo de alternância no poder, relativamente corriqueiro em democracias. Trata-se também de uma mudança de época, que resulta de um deslocamento no eixo do poder político, de alcance histórico. Mas não pelas razões que estamos habituados a supor. A democracia chilena vai muito bem e sua economia está entre as emergentes menos afetadas pela crise de 2008.
A vitória do bilionário Sebastián Piñera, no bojo de uma coalizão política de oposição, representa a reintegração de setores antes alinhados com Pinochet ao processo de concorrência eleitoral. Inclui “os duros” da União Democrata Independente, partido que faz praça de seu culto à imagem do ditador. Para compor esse quadro de mudança na relação de forças a base parlamentar da Concertación reduziu-se de 65 para 54 deputados na Câmara, enquanto a coalizão oposicionista melhorou seu desempenho, com 43,4% dos votos, porcentagem similar à alcançada por seu candidato no primeiro turno. Dentro dela, “os duros” fizeram maioria. É bom qualificar também um indicador citado frequentemente: se é verdade que a eleição do último candidato conservador data de 1958, também é certo que Jorge Alessandri era um conservador democrata, eleito com 31,6% dos votos, com apoio dos liberais.
Isto posto, quais são os fatores que limitam a eficácia de eventuais transplantes? Um deles se refere à composição partidária e à trajetória de continuidade da Concertación. Os partidos de esquerda e centro-esquerda que a integram marcharam unidos no comando da oposição à ditadura e continuaram unidos até aqui. O contraste com a nossa trajetória de democratização é claro. Num raciocínio contrafactual, é como se o PMDB, o PSDB, o PT, o PPS e também a parte republicana do PP disputassem as eleições desde 1982 até hoje. Como se tivessem construído consensos que incluíssem sua lealdade à Constituição de 1988 e também seu compromisso com a pauta republicana no que se refere aos crimes contra os direitos humanos. Claro, isso tem que ver com as diferenças entre o nosso sistema eleitoral e o do Chile, que favorece a formação de dois blocos políticos.
Há uma segunda característica relevante para avaliar os descompassos entre a nossa experiência e a deles. A polarização entre os dois grandes blocos se dá no plano político e simbólico, não no plano do modelo econômico ou da concepção de Estado. Paradoxalmente, o modelo econômico neoliberal, implantado manu militari por Pinochet, simplesmente venceu. “El modelo” foi absorvido durante as negociações que pautaram a transição – e a reforma do Estado foi preservada. Coube ao bloco de esquerda, no poder, usá-la a serviço da construção das redes de proteção social e das instituições que garantem o sistema de pesos e contrapesos entre Congresso, Executivo e Judiciário. Sob esse aspecto, já em 1987 ficou claro para alguns de nós o cálculo estratégico das oposições chilenas. Num seminário organizado por Paul Singer e por mim no Instituto de Estudos Avançados da USP, em colaboração com o Wilson Center, a ausência de polarização nesse campo foi objeto de análise do economista de oposição Alejandro Foxley, que já se preparava para ser ministro ou presidente. Ele trouxe para o centro do palco o caráter irreversível da reforma de Estado levada a cabo sob Pinochet. Caberia ao futuro governo de oposição dar às disciplinas fiscal e monetária recém-introduzidas uma face social.
É a luz dessas características que cabe analisar o impacto das eleições no Chile e o que pode representar para seus vizinhos na região, sobretudo para o eixo bolivariano. O clima de mudança que toma conta do país é predominantemente político e cultural – e nesse terreno entramos em terra desconhecida. As chances da Concertación se estreitaram muito, em função de dois deslocamentos relacionados à forma como se organizou o sistema de pesos e contrapesos. Por um lado, a divisão entre os dois blocos equilibrava a apropriação do poder político pela centro-esquerda, com o poder econômico e midiático concentrado em mãos da direita. Por outro, num país unitário são escassas as chances de a oposição se recompor por meio da ocupação dos espaços abertos pela concorrência em torno dos governos subnacionais, típicos de países federalistas.
(O Estado de SP – 23/01/2010)
No Comment! Be the first one.