Se somarmos dramaturgia à dominância industrial e tecnológica multiplicada pelo consumo em massa, entendemos por que o inglês virou um idioma planetário
Meu professor e orientador em Harvard, o professor doutor David Henry Peter Maybury-Lewis — pioneiro na transformação da etnologia indígena brasileira de um mero catalogo de curiosidades, e sombrias notícias de contato cultural, em questões sociológicas universais — falava fluentemente inglês (sua língua materna), francês, italiano, espanhol, russo, alemão, sueco, dinamarquês, português e duas línguas nativas do tronco jê — xerente e xavante.
Em Harvard, ele provocava inveja no meu mentor e amigo, o então professor assistente Richard Moneygrand, um decidido monoglota. Mesmo depois de ter estudado o Brasil por décadas, Dick até hoje fala português com um sotaque denunciador.
Como bom estudioso, ele explica: “Eu não consegui falar seu língua como ele merecia. Mas quem tem culpa disso são vocês mesmos, brasileiros, que, loucos para serem estrangeiros, se recusavam a me ensinar português, falando comigo todo o tempo em americana!”
Concordo com meu amigo porque muito cedo eu entendi a ascendência do inglês americano na constituição de um mundo global. O cinema, com suas cenas intensas, suas melodias ouvidas subliminarmente e, principalmente, suas telas enormes (onde as pessoas surgiam poderosas tal como as vemos quando crianças), foi talvez a ponte responsável pela difusão do “estilo de vida americano” como uma alternativa existencial otimista. Num país como o Brasil, marcado por uma profunda insegurança — insegurança que foi da estupidez da “raça degenerada” para a asnice do reducionismo econômico —, o otimismo americano produziu um enorme impacto. Se somarmos essa dramaturgia à dominância industrial e tecnológica multiplicada pelo consumo em massa, entendemos por que o inglês deixou de ser a língua do comércio e virou um idioma planetário e interplanetário…
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Moneygrand admitia sua inveja do meu orientador e provocava: de que vale falar tantas línguas quando não se tem muito a dizer em nenhuma? Ao que o meu professor, retrucava: eu acho que a gente só tem a ganhar quando pode dizer “eu te amo” em mais de um idioma…
Assim foi que naquela primavera de 68 ouvi de Dick Moneygrand, num curso intitulado “Hipóteses sobre culturas nacionais”, que nós, brasileiros, tínhamos um pendor religioso pelos “de fora” ou “estrangeiros” quando eles surgiam como brancos, louros, de olhos claros e eram aristocratas, embaixadores, ricos e, obviamente, falavam uma língua que não entendíamos plenamente. “Eis os vossos demiurgos e heróis civilizadores”, dizia Dick. “Eles em nada destoam daqueles que, em outras culturas vieram do céu, das profundezas da terra ou da água — tal como os ‘conquistadores’ e os ‘descobridores’ e a família real lusa — e foram vistos como superiores ou deuses. Tinham, além do sangue azul, e eram diferentes dos pioneiros ou bandeirantes locais, já misturados aos negros africanos e índios escravizados e subordinados como alienígenas inferiores.
Essa idolatria do outro — o branco aristocrata — é algo comum em todos os sistemas coloniais nos quais o colonizado mimetiza o colonizador e tem o sonho de visitar o centro do império do qual faz parte. Mas, no caso do Brasil, houve um tumulto. Primeiro, porque Portugal foi mais tangido pelo comércio do que pela missão civilizatória, como ocorreu no caso espanhol; segundo, pelo fato excepcional na história das realezas, da fuga da família real para o Brasil. Aqui, o centro foi para a periferia num transtorno das teorias da colonização. Quando Lisboa é trocada pelo Rio, há uma implosão carnavalesca na qual colonizador e colonizado ficam exilados. Nesta periferia que virou centro, todos são canibalizados pela força dos costumes locais. Não é, pois, por acaso que o Brasil tenha essa sina imitadora e esse vezo pela estima negativa de si próprio. A familiaridade com aristocratas numa sociedade onde tudo devia ser feito levou a esse, digamos, poliglotismo cultural e político que até hoje faz com que vocês, brasileiros, pensem que existam mesmo países plenamente equilibrados e resolvidos. A idealização do outro corresponde a uma auto-denegação.
Conforme vejo nas minhas anotações, Moneygrand terminou o curso arriscando: “Não há certeza em nenhum lugar. Esses modelos, que vocês tanto buscam, não estão fora, mas dentro de vocês. Tal como os idiomas, eles promovem alternativas, jamais certezas. As ideologias, como as leis que vocês têm em profusão, precisam ir além dos decretos, elas precisam ser seguidas”.
Fonte: “O Globo”, 15/11/2017
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