Em contraste com o caso do Brasil, a Europa não possui (ainda) o que se possa chamar de governo federal
Na minha última coluna, explorei o papel que os eurobônus poderiam desempenhar na solução da crise europeia.
Argumentei que, mesmo não atacando os problemas de ajuste da taxa de câmbio real entre as economias da região (que deve forçosamente se dar pela diferença entre as taxas de inflação, face à adoção da moeda única), essa estratégia ao menos permitiria que tal ajuste ocorresse sem uma crise batendo à porta, e, portanto, com taxas de juros substancialmente mais baixas para os países hoje afetados.
Por razões de espaço, contudo, não pude entrar mais a fundo nas consequências de tal medida.
Apenas notei que, assim como um trapezista se sente mais à vontade para correr riscos quando sabe haver uma rede de segurança, tanto os governos da região como os investidores seriam estimulados a um comportamento menos responsável se acreditassem que, em caso de crise, alguém viria em seu socorro. Não é difícil concluir que, dada essa estrutura de incentivos, a probabilidade de um sério evento fiscal no futuro se tornaria bastante elevada.
É necessário, portanto, pensar com mais cuidado como seria possível conciliar uma dívida unificada com uma política fiscal responsável. Para tanto, a experiência brasileira na segunda metade dos anos 90 nos oferece algumas pistas.
De fato, em mais de um aspecto o problema brasileiro de então se assemelhava ao que a Europa pode enfrentar caso se decida pela criação de eurobônus.
Os Estados brasileiros haviam percebido que podiam contar com o governo federal quando estivessem à beira da insolvência. Não apenas este refinanciava suas dívidas como, de forma mais perversa, os governos locais tomavam empréstimos dos bancos estaduais que, quebrados, eram costumeiramente resgatados pelo Banco Central.
Na última rodada de renegociação, porém, foram criadas instituições que -ao menos até agora- impediram a repetição desse padrão.
À parte a privatização dos bancos estaduais, não muito relevante para o caso europeu, duas delas foram centrais: a Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) e os contratos de renegociação que, crucialmente, colocaram as transferências da União para os Estados como garantia dos pagamentos para o governo federal, na prática evitando o calote das dívidas reestruturadas.
Em comum, ambas aumentaram o grau de controle federal sobre os Estados, ou, de forma equivalente, reduziram a soberania estadual em favor da União.
Em contraste com o caso brasileiro, a Europa não possui (ainda) o que se possa chamar de governo federal. É possível imaginar, entretanto, que o Fundo Europeu de Estabilização (ESF) contenha a semente de uma autoridade fiscal “federal”.
Por exemplo, se a emissão de eurobônus ficar a cargo do ESF, este poderia exigir, como contrapartida ao acesso, a adoção de políticas fiscais condizentes com a manutenção da estabilidade, de forma não muito distinta das condicionalidades associadas ao acesso a recursos do Fundo Monetário Internacional, ou das exigências da LRF.
Isto dito, como a história ensina, inclusive pelos repetidos apelos dos governadores que buscam mudar os termos dos acordos de refinanciamento de dívidas, uma coisa é aceitar as condicionalidades; outra, muito distinta, é seguir à risca aquilo que foi inicialmente combinado.
Aqui, a principal lição brasileira é que as garantias ligadas às transferências federais foram essenciais, mas, no contexto europeu, não podemos encontrar nada muito parecido.
Em outras palavras, adicionalmente à questão política de perda de soberania, a Europa enfrenta também um problema de ausência de garantias.
Ativos a serem privatizados podem ajudar (como ocorreu por aqui), mas não está claro que serão suficientes, nem que possam ser efetivamente dados em garantia.
Parafraseando Churchill, sempre podemos contar com os líderes europeus tomando as decisões corretas, depois de esgotadas todas as alternativas.
Chegaremos lá, mas vai demorar.
Fonte: Folha de S. Paulo, 31/08/2011
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