Em seu artigo 5.º, que contempla extenso rol de direitos e garantias fundamentais, a Constituição prevê que ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória. O texto foi promulgado em 1988 e em 2009 o STF consolidou esse entendimento. Em 2016, porém, a Corte mudou de posição, passando a aceitar a prisão após condenação em segunda instância. E retomou a discussão em 2018, ao julgar recursos impetrados por um ex-presidente da República cuja prisão foi ordenada por um TRF – seus advogados alegaram ser o artigo 5.º uma cláusula pétrea prevista pelo artigo 60 da Constituição.
Essas mudanças de entendimento em curto período de tempo confundem a sociedade. Acima de tudo, recolocam na ordem do dia a tensão entre poder constituinte originário e poder constituinte derivado. O primeiro estabelece uma ordem constitucional. O segundo tem a prerrogativa de alterar essa ordem desde que respeitando os limites e procedimentos por ela estabelecidos. Nesse sentido, não caberia ao poder revisor – um poder constituído – afastar-se do horizonte que lhe foi imposto pelo poder originário – um poder constituinte. À primeira vista, essas distinções parecem claras. Na prática, elas encerram dois problemas, que já discuti na Revista Brasileira de Direito Constitucional (n.º 2, pp. 199-207). Um é de natureza política e está associado à compatibilidade da rigidez constitucional – sob a forma das cláusulas pétreas – com a própria essência da democracia. O outro é de natureza ética e tem implicações transgeracionais.
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Em termos políticos, uma Constituição representa um limite decisório à vontade popular. Em nome da consagração de determinadas liberdades, ela impõe determinadas restrições, institucionalizando direitos e obrigações, prerrogativas e deveres. Promulgar uma Constituição significa limitar a liberdade da maioria em cada momento histórico. Assim, na medida em que constitucionalizar é pôr fora do alcance da negociação política e da vontade da maioria tudo o que é constitucionalizado, quanto mais ampla é uma Constituição, maiores são as limitações do princípio democrático. Por isso, no âmbito político o problema é saber se as normas constitucionais relativas aos limites materiais de revisão colidem ou não com o princípio da regra de maioria que caracteriza a democracia.
Nesse sentido, em que medida um poder constituinte originário pode impor para a eternidade uma vontade democrática? Em que medida a limitação na liberdade de revisão material de um texto constitucional, prevista por cláusula pétrea, pode não se revelar antidemocrática, ao restringir o campo de ação de maiorias parlamentares legitimamente escolhidas a cada nova eleição? Como evitar o risco de que o “excesso de Constituição” acabe tendo o efeito perverso de obrigar operadores jurídicos a ter de fazer leituras complacentes de suas normas, com o objetivo de trazer a Constituição para a realidade e adequá-la às mudanças das circunstâncias histórias? É possível impedir que esse “excesso de Constituição” resulte, contraditoriamente, num déficit de normatividade constitucional?
Desse problema político decorre o problema ético, que se expressa sob a forma de um paradoxo. Na perspectiva do poder constituinte originário, a maioria que aprova uma Carta reivindica um corte jurídico com o passado, ao mesmo tempo que se arvora no direito de vincular o futuro. Contudo, por mais democrático que seja no momento de sua promulgação, é moralmente aceitável que essa Carta possa, com seus dispositivos de irreversibilidade material, com base em cláusulas pétreas, bloquear a capacidade de autodeterminação jurídica das gerações vindouras? É justo que um texto constitucional, por mais nobres que sejam suas intenções, imponha compulsoriamente às gerações futuras obrigações e encargos vindos do passado? Como sair dessa armadilha e desse paradoxo, principalmente no caso de Constituições muito marcadas pela conjuntura social e política de sua origem, como a brasileira?
Uma saída polêmica contrapõe a ideia do poder constituinte originário como ato unigênito e unimomentâneo à ideia de um poder constituinte evolutivo, ou seja, de um poder constituinte visto como um processo capaz de acompanhar a dinâmica da realidade socioeconômica sem subjugar as atuais gerações a determinações do passado. Essa foi a experiência portuguesa, cuja Constituição, na origem repleta de cláusulas pétreas, já sofreu várias revisões. Como isso foi possível? Um de seus redatores e responsável por uma dessas revisões, o jurista Vital Moreira, oferece uma instigante resposta. Por um lado, afirma, passou-se a promover uma interpretação soft das cláusulas pétreas, reduzindo-as mais à salvaguarda de princípios genéricos do que à garantia de direitos concretos assegurados por uma Carta eminentemente conjuntural. Por outro, passou-se a admitir com mais flexibilidade a reconsideração dos próprios limites materiais de revisão, suavizando alguns limites originários, o que libertou para futuras revisões matérias que, de outro modo, não poderiam ser alteradas. “A imodéstia constituinte dificilmente fica impune e o poder constituinte evolutivo acaba por ser a sanção da imodéstia e da arrogância do poder constituinte, quando ele não é capaz de ousar acima da conjuntura da sua própria época”, conclui.
A estratégia de “reforma constitucional sem solução de continuidade formal” é controversa. Mas, neste período em que o STF vem julgando – por margem apertada – os recursos de um ex-presidente preso após ser condenado em segunda instância, vale a pena rediscuti-la, colocando em novos termos a questão sobre efetividade e longevidade da Constituição. Isso é essencial para a segurança do Direito e para a democracia.
Fonte: “Estadão”, 23/05/2018