O professor e filósofo americano Edward Freeman costuma dizer em seus vídeos e palestras que possui “o melhor emprego do mundo”. Freeman afirma que é pago para dar aulas, viajar e conversar com estudantes sobre como negócios podem continuar sendo lucrativos – e, de preferência, mais responsáveis, humanos e, por que não, úteis para a sociedade.
Ao longo dos anos, Freeman ficou conhecido por propagar essa ideia dentro da chamada “Teoria dos Stakeholders”, que define como um negócio pode criar valor não somente para acionistas, bancos ou financiadores — mas também para comunidades, funcionários e fornecedores. “Eu passei os últimos 30 anos tentando desenhar uma nova história em relação a negócios que coloque o negócio e a ética caminhando juntos”, afirmou. A defesa de Freeman sobre a necessidade de se criar novas narrativas de negócios é, sobretudo, acadêmica porque há um descompasso claro entre o que é ensinado hoje nas faculdades e MBAs e a forma como as empresas são construídas no âmbito global.
Freedman visita o Brasil pela primeira vez esta semana a convite da Fundação Dom Cabral (FDC) para participar do Congresso sobre Governança e Ética. Em entrevista a “Época negócios”, o professor de ética da Darden School of Business (Universidade de Virginia) explica por que acredita que a mudança de mentalidade nas empresas e na forma de fazer negócios é possível – e é, sobretudo, um fenômeno geracional.
Como a definição de stakeholders – e o modo como as companhias lidam com eles – foi mudando nas últimas décadas?
Vemos hoje que as empresas têm levado a teoria dos stakeholders mais a sério – principalmente a partir da última grande crise financeira mundial. As pessoas estão percebendo que para criar algo correto, que dê certo, precisam criar valor para os consumidores, funcionários, comunidades, bem como para as pessoas que entram com o dinheiro (os investidores, os bancos, os fundos). Essa ideia nunca esteve tão assimilada como agora. Algumas pessoas veem a teoria dos stakeholders apenas como uma preocupação específica com algum problema da sociedade, mas eu o encaro como a base para qualquer modelo de negócio em uma empresa. Criar valor para seus stakeholders é simplesmente acompanhar o propósito do seu negócio.
Quando falamos hoje em stakeholders, muitas empresas citam a questão ambiental ou projetos sociais como atraentes para essas pessoas. Por que é tão difícil para as empresas pensar em seus stakeholders de uma maneira mais ampla e conectada?
Eu acho que impera o fundamento básico de que negócios existem para fazer dinheiro e aí haverá marcas que não irão considerar todos os seus stakeholders. Entretanto, há um número crescente de empresas que veem o negócio de uma maneira mais integrada, que pensam em como todos podem cooperar juntos – por um resultado melhor – a fim de resolver um problema. E aí os consumidores, fornecedores, a sociedade em geral e as pessoas que colocam o dinheiro no negócio vão sair ganhando muito mais. A questão, para mim, é que as empresas estão demorando para aprender a lição de que é mais importante engajar seus stakeholders já no cerne do negócio, do que envolvê-los somente quando aparece um problema.
As empresas estão focando nos problemas errados?
Eu não sei ao certo. Não acho que as empresas sejam capazes de resolver todo e qualquer problema da sociedade. Elas podem resolver alguns problemas específicos baseadas naquilo que sabem fazer de melhor. Eu tenho alguns exemplos de empresas americanas. A Coca-Cola trabalha em cima de uma questão grande que é a água, uma parte importante do modelo de negócio deles, e da qual depende sua cadeia de produção. Do outro lado, companhias investem no que acreditam ser os melhores alimentos para o ser humano, e isso é parte do modelo de negócio deles. Não vemos as duas companhias atuando na mesma direção. Precisamos ver uma colaboração entre um número maior de empresas, setores e até mesmo o governo. É preciso uma colaboração intersetorial para resolver um grande problema da sociedade. As companhias não resolvem problemas sozinhas. Outra mudança que vemos é a eclosão de uma nova geração, pessoas jovens que procuram resolver os problemas da sociedade. Nós chamamos essas pessoas de empreendedores sociais. Eles têm de fazer dinheiro sim, mas também querem ser parte da grande solução. O mundo dos negócios precisa apoiar esses jovens que trazem uma nova mentalidade, pensar em como integrá-los aos demais empresários e empreendedores.
Em seus escritos, você afirma que essa geração atual é que vai realizar essa mudança na forma de pensar e fazer negócios. Por que essa geração – e não as anteriores?
Mudar o modelo usado para se fazer negócios leva tempo. Sou otimista porque vejo um número crescente de empresas que tem feito mudanças – e em diversos sentidos. Nós já somos a geração que está fazendo isso acontecer. Empresas estão falando mais e melhor sobre sustentabilidade, projetos sociais, investimento de impacto (que pressupõe retorno social) e empreendedorismo social. Algumas falam até em criar valor para stakeholders, outras sobre valor compartilhado. O movimento final e que deve fundamentar a história dos negócios não deve girar apenas em torno do dinheiro.
Quais são os maiores desafios enfrentados por líderes conscientes e pelos negócios cujo objetivo é construir um mundo melhor?
Um grande desafio está em se conectar melhor à sociedade, em como eu crio “instituições de esperança” para as pessoas. Acho que um grande desafio é termos mais pessoas empreendedoras e ensinarmos a elas sobre negócios. Assim, você terá uma geração de empreendedores conscientes. Outro desafio bem maior que ocorre também no Brasil e nos Estados Unidos, envolve infraestrutura. O governo precisa se comprometer com o desenvolvimento, estar ao lado da sociedade para descobrir qual a melhor forma de fazer isso. Então é um problema de empreendedorismo, criar uma geração de empreendedores e oferecer infraestrutura necessária que os ajude na resolução de problemas. E esses desafios, é importante dizer, valem para o mundo todo.
É mais fácil criar uma geração de empreendedores do que fazer as grandes empresas pensarem de uma forma diferente?
Pense no Vale do Silício. Muitos empreendedores comprometidos com as mudanças e que criaram empresas que se tornaram grandes surgiram ali. Muitos, aliás, começaram um negócio justamente porque queriam mudar as coisas. Ainda há, claro, uma porção de empreendedores que entram apenas para fazer dinheiro. Mas aqui o legal é ver que há outro bocado que tem um propósito e esse propósito é descobrir como fazer algo melhor, seja construindo carros ou oferecendo informações às pessoas. De novo: eu acho que a mudança é geracional. Se nós descobrirmos como criar negócios melhores, alguns deles irão crescer. Outros, não. Eu espero que aqueles que derem certo façam do mundo um lugar melhor. Grandes empresas também querem fazer isso e para elas é mais fácil. Mesmo empresas que ficaram presas à sua própria história, em que ganhar dinheiro era uma grande preocupação, estão buscando reconstruir seus propósitos – e inspirando outras a fazerem isso. Isso é muito difícil para quem se acostumou a produzir sempre o máximo, em alto nível e com altos ganhos, trimestre após trimestre.
O senhor defende que há um descompasso entre o que é ensinado nas escolas de negócios e a forma de se fazer negócios no mundo. Na prática, isso acaba gerando negócios que “não conversam” com os dilemas atuais da sociedade. Por que isso ocorre?
Eu acho que as escolas de negócios ficaram aprisionadas pelo antigo método de ensino. Elas não entendem o contexto em que vivemos hoje, por exemplo, qual é a melhor forma de fazer negócios no Brasil. Entendem o que acontece ao seu redor, mas não para onde está indo nossa cultura. Os negócios vão ser ainda mais globais. Essas faculdades não precisam ser científicas, mas de novo, precisam ser mais humanísticas. A ideia que impera nessas instituições fundamenta-se em dois pontos: falam sobre o deve ser um negócio e como tornar os estudantes críticos à linguagem dos negócios. Esse segundo ponto precisamos melhorar. Escolas de negócios precisam, antes de tudo, serem críticas a respeito de si mesmas e ajudarem seus estudantes a serem mais críticos e mais humanos.
Você realmente acredita que os CEOs estão mudando a forma como olham para suas respectivas empresas e negócios?
É difícil generalizar, mas há sim CEOs que estão mudando o olhar. Agora, eu acho que a mudança precisa afetar o negócio inteiro. Será preciso escolher entre como moldar esse negócio que funciona como uma máquina de dinheiro ou perceber qual o propósito real do negócio e, claro, lucrar com ele. Falar que o dinheiro é o propósito do seu negócio é como dizer que respirar é o propósito da vida. Eu tenho que respirar para viver, mas este não é o propósito na vida das pessoas.
Em um vídeo, o sr. diz que não checamos os “valores da empresa na porta de entrada todos os dias”. Quais desafios as empresas enfrentam para criar uma cultura sólida e capaz de engajar os funcionários?
Eu acho que é preciso ter uma conversa clara sobre valores. No mundo hoje, há muitas incertezas e você precisa permitir que as pessoas pensem de modo crítico no negócio. Se você não se sente engajado com o negócio, talvez esteja ligando apenas para os valores do seu chefe, fazendo o trabalho pelo qual é pago. Sendo assim, você não será um bom funcionário nos dias atuais. As pessoas exigem mais conhecimento, um pensamento mais crítico. Quando pergunto aos CEOs quais são as qualidades que eles mais buscam na hora de recrutar alguém, todos dizem: “Eu quero pensamento crítico”. Algumas vezes você vai a uma empresa e vê uma cultura na qual não há espaço para esse pensamento. A cultura do pensamento crítico, a conversa sobre propósito precisa ser viva – e não apenas uma mensagem colada na parede.
Muitas empresas enxergam as preocupações socioambientais ou mudanças dentro do próprio negócio como um custo extra no orçamento. A ideia de que é possível fazer melhor – e gastando menos – está ganhando espaço?
O pensamento de que cuidar do meio ambiente, fazer um produto melhor e cobrar mais do consumidor, já que o processo será mais custoso, é uma ideia preguiçosa. Eu já vi produtos melhores, com maior qualidade e mais baratos produzidos com considerações socioambientais. O ser humano tem capacidade para inovar e descobrir meios para isso. Construir essa mentalidade e fomentar a imaginação para seguir esse princípio é o que realmente faz as melhores empresas. Elas contratam as melhores pessoas para descobrir como, a partir do propósito da empresa, é possível satisfazer todos os stakeholders ao mesmo tempo. Dizer apenas “Olha, eu posso ser uma empresa mais verde, mas isso vai te custar mais”, não funciona. Conversando com o executivo de uma empresa americana, ele me disse “Nós podemos fazer carros de maior qualidade, mas eles custarão mais”. Só que uma das coisas que os japoneses descobriram é que se você engaja pessoas no processo de design e fabricação, você vira o jogo – criando qualidade que se tornará o padrão e se repetirá a partir daí. Basta tocar nos valores das pessoas. E, para isso, é preciso inovação. Há negócios que estão crescendo muito e são mais verdes, mais baratos e criam mais valores. É essa a mudança de mentalidade que precisamos ter.
O Brasil enfrenta atualmente uma crise ética e de valores – com grandes empresas envolvidas em escândalos de corrupção. Como se não bastasse, o país enfrenta uma grave crise econômica. É possível superar essas crises e seguir um caminho em que negócios e ética caminhem juntos?
Os negócios precisam se concentrar em criar valor para seus stakeholders e não em fazer acordos especiais – e o governo não pode abrir brechas para que grandes empresas façam acordos por debaixo dos panos. Um segundo ponto diz respeito a um diálogo dentro da própria sociedade. É preciso ter um processo político dinâmico que abra espaço para as pessoas discordarem e colaborarem, se esses for seu intuito. A boa notícia é que essa visão já é real, pelo menos em nível regional. Já vejo uma geração de políticos jovens que se mostra comprometida em resolver, de fato, problemas locais. O foco precisa ser localizado, tornar as comunidades melhores e fazer uso mais inteligente dos recursos. Os negócios precisam focar em serem o que chamamos de “community builder”, ou seja, que ajudem a construir comunidades.
Fonte: “Época negócios”, 27 de setembro de 2016.
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