Os jornais têm noticiado com destaque o envolvimento de organizações não governamentais em supostas práticas de corrupção e má aplicação de recursos públicos recebidos por meio de convênios. Por duas vezes, em 2003 e 2007, o Senado instalou “CPI das ONGs” para avaliar irregularidades e propor mudanças no regime de relacionamento, sem que resultados concretos tenham sido alcançados. O Tribunal de Contas da União (TCU), de sua parte, tem reiteradamente apreciado prestações de contas de convênios com ONGs e, com razoável frequência, questionado práticas de contratação de despesas realizadas. A presidenta, atenta ao problema, editou em pouco mais de um mês três decretos sobre o tema (7.568, 7.592 e 7.594).
Tantas ações mostram que vivemos um momento oportuno para reflexão sobre um novo modelo de cooperação entre o Estado e a sociedade civil.
Temos apenas 25 anos de restauração da democracia e hoje vivemos o mais longo período de estabilidade democrática em cinco séculos. Somados os dezessete anos de baixa inflação, podemos afirmar que vivemos tempos únicos na história desse país.
Desde a redemocratização, nosso país está reaprendendo a lidar com a esfera pública, em que dois atores, governo e ONGs, têm legitimidade de atuação. A legitimidade das ONGs tem suas raízes mais profundas na Carta da ONU, que, cunhando a expressão “organizações não governamentais” e estabelecendo procedimentos de interação com tais entidades, reconheceu que a esfera pública era mais ampla que a esfera estatal e que não apenas os Estados tinham que ser ouvidos em assuntos afetos às necessidades e aspirações dos cidadãos.
No Brasil, com a Constituição atual, a sociedade civil organizada adquiriu o direito de opinar e, por vezes, deliberar, sobre políticas públicas em temas tão diversos que vão da educação, saúde e assistência social, ao meio ambiente, política agrícola, segurança pública e desenvolvimento regional, só para citar alguns.
Tudo isso coloca a sociedade em um novo patamar de relação com o Estado, sendo necessário rever os instrumentos de relacionamento entre ambos, mormente em um contexto onde o direito administrativo pouca atenção dá ao papel e limites do Estado em um ambiente democrático e pouco ou nada discorre sobre o papel da sociedade civil e de suas entidades na definição, controle e monitoramento de políticas públicas e na fiscalização da máquina pública.
O Decreto nº 7.592, recém-publicado, suspendeu por 30 dias a transferência de recursos para as ONGs e determinou aos ministérios que avaliem a regularidade da execução dos muitos convênios e contratos de repasse e dos poucos termos de parceria no mesmo prazo, para, então, serem retomados os repasses de recursos.
Podemos esperar um congestionamento do sistema de avaliação, dado que as entidades apresentarão ao mesmo tempo suas prestações de contas parciais e ansiosas cobrarão a sua apreciação por equipes enxutas e com outras atribuições. Não havendo fiscalização ‘in loco’, tudo será feito a partir da leitura de pilhas de papel. Para se cumprir o prazo e resolver-se tudo antes da desaceleração das festas de fim de ano, muita pressão será feita nos gabinetes, não podendo se descartar a hipótese de tráfico de influência. Como não haverá tempo para todas, a maioria seguirá suspensa por mais 60 dias, até as portas do Carnaval, após o qual, tudo começa neste país. Ou recomeça, já que pouco se inovou na forma de relacionamento entre Estado e ONGs e no controle dos malfeitos.
Devemos inovar. Os convênios, por exemplo, devem ser extintos e substituídos definitivamente por instrumento de caráter mais republicano, como os termos de parceria, que requerem o envolvimento dos conselhos de politica pública na seleção de entidades, as quais, por sua vez, devem adotar diversas práticas de transparência, que incluem prestação de contas anuais ao Ministério da Justiça, abertas a qualquer cidadão, e regras sobre conflitos de interesses na tomada de decisão.
Da parte do Estado, qualquer contratação de serviços contínuos cuja prestação lhe incumba constitucionalmente, como, por exemplo, ações e serviços de saúde, deve ser submetida a processo seletivo, talvez licitatório. A prática de contratar tais serviços por convênios não só permite que o Estado fuja ardilosamente dos limites da Lei de Responsabilidade Fiscal como também lhe permite contratar abaixo do custo, em uma prática que tem levado ao sucateamento do serviço de saúde e extinção de milhares de leitos hospitalares por todo o país.
Pouco adianta impor mais e mais regras às entidades se o agente público segue tendo ampla liberdade de escolher quem bem lhe apraz para receber recursos governamentais. Com isso, pune-se os bons com a sobrecarga burocrática, e deixa-se impune o mau, que pegou o recurso e deu-lhe cabo sozinho, ou, pior, dividindo com o agente público mal-intencionado.
Sabemos que o excesso de controles burocráticos tem sido notoriamente ineficaz. Se não conseguimos nos libertar do modelo cartorial que concebemos, então, pelo menos, poderíamos avaliar a extinção da prescrição das penas antes do transito em julgado de sentenças finais em ações penais que versam sobre improbidade administrativa e corrupção ativa e passiva. Pelo menos assim, a burocracia trabalharia a favor do erário. Se isso não for possível, alternativamente, poderíamos defini-los como crimes hediondos por conta da sua gravidade acentuada para a sociedade em geral.
É necessário inovar, privilegiando relações republicanas em um Estado Democrático de Direito.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 08/12/2011
Excelente artigo.
Deveria haver um critério técnico na escolha de qual entidade do terceiro setor selecionar, baseado em seu corpo diretor. Por exemplo, o que a priori seria mais eficaz tecnicamente, um projeto na área da educação coordenado por uma OSCIP de médicos, advogados ou professores? O terceiro setor, principalmente através de OSCIPs, tem grande potencial de melhorar os serviços para a população.