Quando aprendi Antropologia, era comum começar pelas diferenças entre animais e homens. Ambos são seres da natureza, como são as sociedades, mas, não obstante, possuem características distintas. Os animais são programados. Um tigre não vira uma anta, mas nós, embora brasileiros, podemos ser ingleses ou franceses. Como dizia Sartre, somos condenados ao duro aprendizado da liberdade, cujo diálogo é com a divergência, a exclusão, a indecisão e o purgatório.
Somos, assim, infatigáveis buscadores de ancoras e bússolas, de leis e juízes, pois quem nos embala são circunstâncias dadas por situações e costumes. Nossa natureza, como diz Marshall Sahlins, é a cultura. Somos feitos pelo arbitrário de nossas línguas, que obrigam a falar e a ouvir de modo particular e a seguir categorias gramaticais de modo inconsciente.
Vivemos em mundos diferenciados, que podem ou não excluir outras humanidades ou incluir todos os seres vivos como nossos semelhantes. Graças à linguagem articulada, vivemos numa roupagem espiritual.
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Na velha fórmula: nós fazemos a nós mesmos e, em consequência, somos feitos pelo que fazemos — porque não há nada mais irônico do que criar leis e deuses e, ato contínuo, rejeitá-los; ou por eles morrer ou matar.
Marx falava em fetichismo da mercadoria. Os antropólogos falam no animismo que “anima” o mundo, atribuindo intenção às certas coisas. A imagem de barro torna-se milagrosa; a aliança de ouro bloqueia certas relações. As nossas arbitrárias reinvenções e nós mesmos demandamos tribunais, árbitros, mediadores, representantes e juízes.
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Os professores de Direito Constitucional dizem que a “Constituição” constitui a sociedade. O quadro se complica quando, ao reverso, os antropólogos afirmam que as constituições é que são instituídas pelas sociedades. Por isso, elas reafirmam seus ideais, tabus e privilégios. Ademais, as “constituições” surgiram quando inventou-se a escrita. Foi a capacidade de fixar normas em pedra ou em bronze, como dizia Rousseau, que permitiu a sua leitura como normas eternas, impessoais, divinas e, nas democracias, imparciais. Sujeitas a divergências e interpretações mas acima — eis o ponto — de sua destruição. Tornar a lei neutra ou nela criar um espaço intermediário de espera é nelas abrir o espaço do purgatório. Um lugar para onde são enviados cidadãos especiais cujos julgamentos são embargados ou protelados.
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A lei escrita ou “constituída” não resolve tudo, mas espelha o “espírito” do povo que a engendrou. A maior prova disso é a índole do nosso regime legal nos seus variados mecanismos destinados a salvar as pessoas especiais do inferno dos cárceres, colocando-as nos purgatórios da ausência de julgamento. Aliás, nossos julgamentos — quando terminam — não seguem a norma do culpado ou inocente, mas concedem infinitas recorrências (ou indulgências) aos pacientes privilegiados. Seguem o modelo purgatorial e, eventualmente, prescrevem crimes. Sobretudo os chamados delitos de “colarinho branco”, um termo que denuncia a notável diferença para com os “crimes dos que não usam gravata”. Ou seja, o delito dos comuns — esses que não roubam o Estado, mas as galinhas dos vizinhos.
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Hoje tudo isso surge com clareza. Quanto mais pobre, mais inferno; quanto mais importante, mais céu ou purgatório. E, com o purgatório, as indulgências nas quais o argumento político é usado contra o jurídico. Isso para não falar dos recursos e embargos que a sociedade já não pode mais tolerar. Penso que o purgatório é o espaço social inconsciente e dominante no fundo da cultura legalista nacional. É ele que sustenta o discurso da inocência, da vitimização e da injustiça.
Imaginar, pois, que o nosso Direito e tudo o que vem com ele não sofreu as influências da cosmologia ibérica — forjada pelo limbo, pela Virgem Maria, Mãe de Deus; pela Santíssima Trindade, pelos milagres e perdões misericordiosos que transformam pecadores em santos e mártires — é uma ingenuidade sociológica. Mas é assim que tem andado a barca e, por isso, Deus — dizíamos — é brasileiro.
Fonte: “O Globo”, 18/04/2018