“De perto, ninguém é normal”, já dizia, ou melhor, cantava, Caetano em sua “Vaca Profana”. De fato, temos defeitos que muitas vezes nos envergonham, e, por vezes, nos defrontamos com amigos que admiramos vivendo um momento de fraqueza que parece ofuscar suas qualidades.
Lendo boas biografias de personagens da nossa história também ocorre o susto, ao nos darmos conta das limitações de líderes que tiveram um papel importante no país e que, a despeito disso, merecem nossa admiração por seu legado. É o caso, por exemplo, da brilhante biografia que Lira Neto escreveu sobre Getúlio Vargas, ou a obra “Juca Paranhos, o Barão do Rio Branco”, de Villafañe Santos. Em ambas, o protagonista aparece, em algumas passagens, sendo injusto, com dificuldades em ter empatia ou em situações em que o público e o privado se misturam de forma inapropriada. Mas nem por isso a sua contribuição ao Brasil se vê diminuída; afinal, somos todos humanos, seres imperfeitos em constante transformação.
O que chama a atenção, no entanto, em fatos recentes, é que, diferentemente do Barão do Rio Branco e de Getúlio, ou de muitos de nós que nos recolhemos para lamber nossas feridas quando percebemos nossas imperfeições ou buscamos remediar erros ou, ao menos, não repeti-los, há quem se orgulhe de grosserias, de ameaças ou até ostente os seus desejos de acabar com a vida de outros que os tenham ofendido.
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Nas redes sociais, essa postura se agiganta: há verdadeiras competições de quem expõe suas vilanias com mais entusiasmo ou consegue ser politicamente mais incorreto. Aqui, o preconceito é transformado em virtude, e os poucos que tentam chamar os intolerantes à razão são acusados de impedir a diversão dos outros. Como se o sofrimento causado àqueles de quem se ri não devesse ser levado em conta.
Sim, sei que essas condutas existiam antes de o mundo virtual escancarar o esgoto escondido, mas a esperança é que a humanidade, assim como cada ser que a integra, aperfeiçoe-se ao longo da história, aprenda com seus erros e encontre caminhos melhores para lidar com dilemas éticos. Já superamos tantos equívocos que mancham nossa trajetória, como a escravidão legal, genocídios liderados ou consentidos pelo poder público e exclusões de toda sorte!
Ainda há muito o que fazer para avançar. Afinal, persistem uma profunda desigualdade social, o desrespeito a direitos básicos e agressões desnecessárias nas relações interpessoais. Mas, seja enquanto país, ou como seres humanos individuais, não podemos retroceder, defendendo quem destrói o futuro ou indo armado enfrentar quem achamos que nos ofende a honra.
Fonte: “Folha de São Paulo”, 4/10/2019