O século 20 foi rico em guerras, ideologias e aprendizagens. A história nos mostrou claramente, naquele período, como enfrentar algo que raramente levamos em conta: o fato de que a natureza humana é imperfeita, mesmo nos melhores líderes.
Eles podem deixar legados importantes e, mesmo assim, cometer deslizes menores ou maiores e erros de julgamento que podem pôr em risco a liberdade e a democracia.
Podem ter preconceitos fortes e abraçar projetos que se mostram posteriormente equivocados e, mesmo assim, trazer contribuições importantes. Daí a importância de não “endeusar” ninguém.
Mas a percepção da falibilidade humana deve nos levar a adotar cuidados adicionais: há que se contar com instituições fortes, à prova de pessoas no exercício do poder.
Essa constatação já havia motivado os fundadores de democracias a embutir no desenho de suas instituições proteções que evitassem o uso de poder monocrático, inspirando-se tanto na tradicional separação de Poderes de Montesquieu quanto na limitação ao poder de governar por referendos.
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Segundo Timothy Snyder em sua obra “Sobre a Tirania”, recentemente traduzida para o português, precisamos defender as instituições democráticas com todo o empenho, mesmo contra governantes que eventualmente apreciamos, pois, caso contrário, pomos em risco até a possibilidade de, no futuro, suas ideias virem a ser livremente divulgadas e seu legado a ser consolidado.
Da mesma forma, a aceitação de reeleições contínuas do “bom” líder ou a eliminação de partidos de que discordamos trazem grande insegurança ao processo.
Modernamente, a democracia se tornou mais inclusiva, estendendo o voto às mulheres, aos iletrados e aos negros, num processo doloroso em que defensores de extensão do voto a minorias foram perseguidos ou ridicularizados e subterfúgios foram construídos para não se cumprirem as novas leis.
No caso americano, segundo Steven Levitsky, o frágil consenso institucional trouxe, logo após os avanços obtidos pelo movimento dos direitos civis, feridas que ainda não cicatrizaram e busca de novas formas de exclusão, mesmo no século 21.
Sim, é desafiador construir instituições democráticas que sejam abertas para todos e mais difícil ainda defendê-las de ataques de quem, em outros temas, pensa como nós. É também tentador fechar os olhos para os malfeitos dos “nossos” e potencializar o dos outros, apresentando-os como parte de um grupo que deveria ser excluído do sistema democrático.
A lei, no entanto, é para todos. Afinal, seres humanos podem construir um legado formidável para seu povo, mas são condicionados pela falibilidade de sua condição.
Fonte: “Folha de S. Paulo”, 20/04/2018