O julgamento do mensalão e suas reações partidárias estão expondo diferentes acepções da democracia. Uns e outros defendem ou reclamam de determinados procedimentos jurídicos e, mesmo, de coberturas midiáticas e jornalísticas em nome da democracia. Contudo, não fica muito claro de qual democracia se está falando.
De um lado, o Supremo está dando uma rara demonstração de uma instituição que não se curva nem ao poder Executivo, nem ao Legislativo, nem, sobretudo, a injunções partidárias. De outro lado, há dirigentes partidários que, não apenas tinham tudo apostado na impunidade, mas, principalmente, porque atribuíam às urnas uma espécie de poder divino, o de absolvê-los.
Duas concepções da democracia estão envolvidas. Uma concepção, encarnada pelo STF, é a reafirmação do Estado democrático de direito, que se situa acima de qualquer contenda partidária. É a democracia representativa. A outra é a que se faz presente em declarações do presidente do PT, Rui Falcão, do deputado João Paulo Cunha e do ex-presidente Lula. É comum a todos eles o desprezo pelas instituições, a invenção de “golpes” e o recurso a uma suposta absolvição do povo mediante eleições. É a democracia totalitária.
Vejamos alguns traços da democracia representativa: a) o Estado de direito é central, baseado na impessoalidade, na imparcialidade e na universalidade das leis; b) a supremacia das instituições sobre quaisquer processos eleitorais, pois eleições pressupõem instituições que as tornem possíveis; c) as condições de uma sociedade livre não podem, por constituírem princípios, ser submetidas a eleições, algo que foge ao escopo dessas; d) os meios de comunicação e a imprensa em geral são livres; e) processos eleitorais são realizados regularmente, fazendo parte do funcionamento do Estado. No entanto, eleições são uma das características de um Estado livre, não esgotando a sua significação. Eleições sem liberdade de imprensa e sem um Judiciário independente não podem ser consideradas, stricto senso, democráticas.
Vejamos alguns traços da democracia totalitária: a) a consideração de que a dita soberania do povo é ilimitada, podendo, inclusive, alterar ou mesmo banir as condições de funcionamento de um Estado e de uma sociedade livres; b) normalmente, tal tipo de discurso é instrumentalizado por um grupo político que se utiliza desse tipo de demagogia para se instalar no Poder; c) essa liderança que se autointitula “popular” considera os meios de comunicação e a imprensa em geral como “inimigos”; d) a concepção de “democratização dos meios de comunicação” é uma forma de domínio da dita “elite popular” que procura o controle total da sociedade; e) o Judiciário é considerado um Poder subalterno que deve ser domesticado e controlado, de modo que se torne um instrumento dos totalitários que poderão, então, dizer que agem de acordo com a “lei”; f) uma característica de seu discurso reside na criação de inimigos fictícios, que os estariam sempre perseguindo. A sua forma ideológica reside na formulação de um “golpe de Estado” que estaria sendo urdido; g) na verdade, ao construírem essa ficção, procuram criar condições para eles mesmos abaterem os seus adversários políticos.
Exemplos claros de democracia totalitária encontramos nos países bolivarianos vizinhos, cujo estágio mais avançado é o da Venezuela, sendo seguida pela Bolívia e pelo Equador. Os traços totalitários acima destacados encontram-se todos presentes, o que unicamente varia, segundo as circunstâncias, é a intensidade. Comum a todos eles é o projeto de “subverter a democracia por meios democráticos” em particular por intermédio de eleições.
Alguns desses traços totalitários encontram-se em declarações de certos dirigentes petistas. O mais relevante deles é o de que “o povo julga” através das eleições. O povo se manifestando através de eleições teria um poder ilimitado, que não poderia, então, ser limitado por instituições, dentre as quais o Supremo. Meliantes políticos teriam, dessa maneira, uma espécie de salvo-conduto para a criminalidade, comportando-se como se punições não os pudessem alcançar.
Outros traços totalitários se fazem presentes: a) a mentira, o negar os fatos, é um desses traços, particularmente presente no discurso de que o “mensalão não existiu”; b) a declaração do presidente do PT de que o julgamento do mensalão seria uma espécie de golpe urdido pela mídia conservadora e por um Supremo igualmente conservador ; c) o menosprezo do Judiciário como um Poder a serviço de conservadores bem mostra o quanto a independência do Judiciário e o estado de direito são alvos que deveriam ser enfraquecidos; d) a “crítica” à “mídia conservadora” se inscreve em uma linhagem de setores do petismo que procuram controlar os meios de comunicação graças a artifícios ideológicos como o da dita “democratização dos meios de comunicação”.
Torna-se aqui necessário fazer a distinção entre setores radicais do petismo e outros setores do partido, que não podem ser apresentados como se fossem um bloco monolítico, ideologicamente coeso. O governo petista atual tem se recusado a qualquer cerceamento da liberdade de imprensa e dos meios de comunicação em geral. Outro exemplo: os ministros indicados pela presidente Dilma, no julgamento do mensalão, têm, até agora, se recusado a qualquer inflexão ideológica, obedecendo a critérios técnicos e jurídicos. O atual governo, ademais, pelo seu silêncio, procura se manter distante de qualquer contaminação política. Ou seja, o governo petista está seguindo as condições de uma democracia representativa, ao arrepio de setores de seu próprio partido.
O julgamento do mensalão coloca-nos diante de uma encruzilhada de distintas significações da democracia. O caminho que está sendo trilhado indica, contudo, um fortalecimento do Estado democrático de direito.
Fonte: O Globo, 24/09/2012
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