Para além dos problemas tradicionais que todo prefeito deve resolver — como decidir sobre obras e garantir serviços essenciais à população —, há um desafio hercúleo à espera dos novos (ou dos velhos) gestores: lidar com demandas fiscais crescentes nas cidades, onde o orçamento só diminui.
O problema já existia muito antes de chegar a crise do coronavírus, mas vai se agravar em 2021, devido a serviços represados durante a pandemia, sobretudo na área de saúde.
O Conselho Nacional das Secretarias Municipais de Saúde (Conasems) contabiliza cerca de 700 milhões de procedimentos não realizados nos últimos oito meses, entre atendimentos ambulatoriais e hospitalares. Até o fim do ano, esse número pode chegar a 1 bilhão, estima o órgão.
“Haverá aumento de gastos num cenário de receitas incertas. Um desafio tremendo para os prefeitos eleitos, que deverão ter uma capacidade de gestão muito grande para superar isso”, diz Kleber Castro, consultor técnico da Frente Nacional de Prefeitos (FNP). “A mesma coisa acontece com a educação, que passará por um aumento no custo de operação das escolas para se ajustar aos novos protocolos criados contra a disseminação de covid-19”.
Paralelamente a esse efeito, a participação dos municípios no financiamento de saúde só aumenta. Estima-se que, dos 164,4 bilhões de reais gastos pelas cidades no setor em 2019, mais de 60% vieram dos cofres das prefeituras, segundo números do Tesouro Nacional compilados pelo Observatório de Informações Municipais (OIM). De transferências da União e dos estados, foram 38,24%. Esse movimento é chamado de “municipalização” pela FNP, que diz que, em 2009, os cofres municipais ficavam em cerca de 45% desse gasto.
Dívida crescente
Até o fim do ano passado, só as 57 cidades que vão ter segundo turno nas eleições municipais de 2020, que têm mais de 200.000 eleitores, totalizam 84,53 bilhões de reais de dívidas em empréstimos e obrigações de longo prazo, segundo cálculo do Portal Meu Município (PMM).
Esse valor vem crescendo a uma grande velocidade desde a Constituição de 1988, quando uma série de pagamentos foi inclusa no rol de obrigações dos entes, de forma a ampliar os serviços sociais públicos, segundo Fernando Rabelo, especialista em políticas públicas e coordenador do PMM.
De lá para cá, o país já passou por diversos momentos de crise e de avanço, embora esses últimos tenham sido menos frequentes. “Quando houve aumento de arrecadação, na grande maioria das vezes, os valores foram convertidos em despesas fixas, como contratações e aumento de salários de servidores”, diz André Luiz Marques, professor do Insper. “Não que esses movimentos não fossem vistos como necessários naquele momento, mas o ponto é que é um tipo de gasto sem a menor margem de manobra para momentos de crise”.
Desta forma, além de a receita dos entes não subir na mesma proporção, os prefeitos tomaram gosto pelos empréstimos de longo prazo, que, de forma geral, não impactam a gestão corrente.
Por esse motivo, diferentemente do Tesouro Nacional, que leva em consideração a situação corrente das contas dos entes, o PMM considera as contas de longo prazo, por considerar uma forma mais eficiente de enxergar a real situação do município. O ranking no pé do texto, compilado pelo PMM, mostra quais são as cidades com mais de 200.000 habitantes com maior endividamento em relação à sua receita corrente líquida.
No caso de João Pessoa, por exemplo, a taxa de endividamento bruto pela ótica do PMM está em 20%. Ou seja, os empréstimos e obrigações de longo prazo representaram 20% das receitas correntes líquidas da cidade. Já pela ótica do Tesouro essa porcentagem é negativa em 78%, que significa que todo o valor que a cidade tem em caixa no final do ano passado era maior do que o saldo total nessa proporção.
“Pode parecer confortável, mas não significa que é o retrato de hoje. A visão do caixa é muito fluida, pode mudar de acordo com a época do ano, como na época em que os contribuintes pagam o IPTU, por exemplo”, diz Rabelo.
Pela Lei de Responsabilidade Fiscal, o valor da dívida dos entes pode representar até 120% de sua receita corrente líquida. Para essa contagem, é a ótica do Tesouro que vale. Há 32 municípios hoje que excedem esse limite, quase todos no Norte e no Nordeste, mas nenhum deles está entre as cidades que terão segundo turno nessas eleições. Entre as cidades com mais de 200.000 habitantes, Mauá, no ABC Paulista, é a que tinha a situação mais crítica no fim de 2019, com 107,81% de endividamento. São Paulo tem 55,82% e o Rio, 66,97%.
As grandes serão mais penalizadas?
De uma forma geral o novo federalismo fiscal entende que as cidades maiores têm mais condições de arcar com suas obrigações, já que têm mais contribuintes e atividades na área de serviços, que pagam o ISS, cuja receita é dos municípios, ou de lançamentos imobiliários, por exemplo, que significam mais IPTU. Atualmente, no entanto, nem sempre essa teoria se reverte na prática.
“Cidades médias que ficam na franja de uma metrópole, por exemplo, muitas vezes cidades-dormitório e muito populosas, ficam num limbo, pois não têm os mesmos recursos que as pequenas e as grandes. Não conseguem receber o suficiente nem do FPM [Fundo de Participação dos Municípios] nem de impostos sobre serviços”, diz Gilberto Terre, secretário executivo da FNP. Esse é o caso de Mauá, por exemplo.
“Será preciso ter muita resiliência e capacidade de gestão nesses novos mandatos. O desafio não é pequeno para essa turma. Vamos torcer para que todos eles estejam preparados e saibam o tamanho do problema que os espera em janeiro de 2021”, diz Marques, do Insper.
Fonte: “Exame”, 25/11/2020
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