O Índice de Gini é uma medida de desigualdade criada pelo estatístico italiano Conrado Gini para medir o grau de concentração de renda em determinado grupo de pessoas. O índice, que varia de zero a um, mostra a diferença entre a renda dos mais pobres e a dos mais ricos. Menor o índice – ou seja, mais próximo de zero –, mais perto se está da situação de igualdade na distribuição de renda. No outro extremo, um índice de Gini igual a um equivale a ter a renda toda concentrada num único indivíduo.
O Brasil tem um Gini muito alto. Segundo dados do IBGE, embora os números tenham seguido uma trajetória de queda quase contínua desde o início dos anos 2000, devolvemos parte dessa queda nos últimos anos. Em 2018, os cálculos apontam para um Gini de 0,545, confirmando a reversão na tendência de queda que se iniciou em 2016, quando o índice atingiu 0,537 ante os 0,524 de 2015. Em 2019, observa-se algum alívio, com um ligeiro recuo para 0,543. Mas, melhorando ou piorando, continuamente ou na margem, os rankings globais do Banco Mundial ou da ONU, que comparam a desigualdade de renda nos diversos países, continuam a apontar o Brasil como um dos países mais desiguais do mundo. Para 2020, os prognósticos ainda estão embaçados pelos efeitos da pandemia, com os impactos da crise sobre a renda misturando-se aos do auxílio emergencial de R$ 600. Mas, qualquer que seja o efeito dominante no resultado final, a verdade é que nossa desigualdade social se estende muito além da segunda casa decimal do índice de Gini.
Em relatório divulgado em janeiro deste ano pelo Fórum Econômico Mundial, o Brasil aparece no 60.º lugar dentre 82 países em um ranking que mede o índice de mobilidade social e avalia as chances de uma pessoa que nasce numa determinada condição socioeconômica ascender e atingir uma situação melhor ao longo da sua vida. A avaliação extrapola o cálculo da desigualdade de renda, ao considerar as condições de acesso da população de baixa renda à educação, saúde, tecnologia, mercado de trabalho e a uma rede de proteção social. O resultado para o Brasil é chocante: um brasileiro nascido na base da pirâmide, dadas as oportunidades geradas por essas condições de acesso, levaria nove gerações para conseguir chegar à renda média do País (de cerca de R$ 2.400/mês, segundo o IBGE). Nossa pior posição está no indicador de aprendizagem ao longo da vida (80.º), consequência da baixa capacitação de uma parcela expressiva da força de trabalho, desde o ponto de partida até a sua maturidade profissional. Educação, ou melhor, a falta dela, está na raiz do nosso problema social. Não, não é novidade.
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Mas os últimos quatro meses mostram que há outras dimensões da desigualdade social brasileira que precisam ser consideradas – e priorizadas. Basta colocar uma lupa no sistema de saúde, na educação, nas condições de moradia, na informalidade do trabalho, na massa salarial e no desemprego e até mesmo no acesso aos canais financeiros digitais e cruzar essas informações com os impactos da epidemia por segmento de renda da população brasileira para perceber que há faces ainda mais duras e mais cruéis da nossa desigualdade.
Na área de Saúde, o Sistema Único de Saúde (SUS) demostrou sua importância no que se refere à capilaridade e ao acesso universal, mas as deficiências na infraestrutura hospitalar, na disponibilidade e adequação de mão de obra, na distribuição dos equipamentos e artigos hospitalares e, claro, na capacidade do Estado de coordenar políticas públicas de resposta e administração da crise de saúde – com a correta mobilização e distribuição de recursos – nos custaram muitas vidas. Vidas na base da pirâmide. A politização do combate à crise por um presidente irresponsável agravou o problema, é verdade. Mas isso não minimiza o impacto das ineficiências estruturais que se acumularam ao longo do tempo e que se refletem na baixa capacidade de planejamento, nas falhas na distribuição de recursos, na falta de priorização e, acima de tudo, nos erros de execução gerados por uma máquina obsoleta, analógica, cartorial, antiquada, lenta e burocrática.
Na educação pública, a perversidade se reflete na incapacidade de manter as aulas durante o isolamento social, com impactos inestimáveis sobre aprendizagem, evasão escolar e, não menos importante, no desemprego entre mulheres, notadamente as de baixa renda. Muito além do argumento da falta de recursos, o fator determinante é a notória falta de prioridade pública que se dá à educação no Brasil. Se em tempos de paz ela já vem falhando, em tempos de guerra ela sucumbe.
Nas condições de moradia surge mais uma fonte de assimetria. Muito além das discussões sobre a viabilidade do trabalho remoto, aqui são a insalubridade e as condições inadequadas de higiene que emergem. Além disso, à informalidade dos 40% de trabalhadores brasileiros invisíveis ao Estado juntam-se as limitações ao acesso a serviços financeiros digitais – que levaram tantos, tão dependentes que são de papel moeda, a compartilhar filas e máscaras nas portas da Caixa.
O impacto assimétrico da pandemia escancara a triste divisão entre os brasileiros que suportam e os que a duras penas tentam apenas sobreviver à atual crise, e deixa claro que a desigualdade social é, de longe, a nossa pior chaga. Chaga que o Estado brasileiro, capturado e ineficiente, ao invés de combater há muito se transformou em seu mais perverso propulsor.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 14/7/2020