Uma tempestade deixa arrasada uma cidade inteira, e os preços dos produtos básicos para a sobrevivência explodem. É justo cobrar o que for possível nestas circunstâncias emergenciais, ou o governo deve intervir para impor um comportamento mais virtuoso dos cidadãos? Em outras palavras: deve a lei tentar promover a virtude ou ser neutra quanto a estas concepções, deixando cada um livre para escolher?
Estes e muitos outros dilemas morais são abordados no instigante livro “Justiça”, do professor de Harvard Michael J. Sandel. O autor levanta inúmeras questões interessantes sobre justiça e o papel do governo, focando em diversas escolas de pensamento diferentes. Sandel revisita o pensamento de Aristóteles, de Kant, de John Stuart Mill, de John Rawls, dos libertários e de outros filósofos que dedicaram energia na tentativa de responder a delicada pergunta “o que é justiça?”.
O leitor termina o livro talvez com mais dúvidas que respostas, sinal de que, provavelmente, a postura mais condenável nestes dilemas seja justamente a que toma partido radical de forma simplista. Quem pensa ter respostas fáceis para dilemas morais pode até espantar um pouco da angústia que persegue todos aqueles mortais que se dedicam ao tema, mas isso não quer dizer, de forma alguma, que chegou mais perto da verdade.
O próprio autor toma partido no final do livro, que não necessariamente é o mesmo que o meu. Mas ele o faz somente após abordar divergentes pontos de vista, apresentando bons argumentos de cada lado, o que demanda uma postura humilde diante do hercúleo desafio. Sua empreitada preza a honestidade intelectual de quem realmente busca respostas, a ponto de parecer que ele realmente está defendendo cada lado do debate. Só isso já é suficiente para merecer meu respeito, ainda que a conclusão não seja a mesma.
Até porque, como disse antes, não acredito que seja razoável ter respostas tão enfáticas para dilemas tão complexos. Quem ousaria oferecer uma resposta simplista sobre a questão do aborto, por exemplo? Se liberdade é apenas ausência de coerção humana, e se este é o único valor importante, como sugerem alguns libertários, até quando a sociedade deve tolerar as trocas voluntárias entre adultos? A prática do canibalismo, se consentida (como naquele bizarro caso alemão), deve então ser tolerada pela lei? Deve a poligamia ser legal?
O utilitarismo também é dissecado no decorrer do livro. A máxima de que devemos beneficiar o maior número possível de pessoas abre brechas para inúmeras atrocidades que poucos defenderiam abertamente. Mas alguns casos levantam verdadeiros dilemas morais. Por exemplo, o caso hipotético de um bonde desgovernado em que o condutor pode salvar cinco pessoas desviando a direção, mas com isso matando um inocente. Seria justo fazer isso? E se forem não cinco, mas cinco mil pessoas? E se você, enquanto expectador, pudesse jogar um inocente no trilho e com isso salvar centenas de pessoas? E se este inocente fosse, na verdade, um crápula ou um criminoso qualquer? Isso faria alguma diferença?
O que fica claro é que temos alguns princípios conflitantes que produzem tais dilemas morais. Salvar vidas é importante, mas não agredir um inocente também. Nenhuma resposta é fácil nessas horas, principalmente na prática. Claro que utilizar os casos extremos para julgar uma teoria de justiça pode não ser o mais adequado, uma falácia conhecida como reductio ad absurdum. Mas estas abstrações servem justamente para demonstrar que nenhuma teoria de justiça será perfeita, absoluta, ideal para todos os casos imagináveis.
Vejamos o exemplo das Forças Armadas. A proteção contra potenciais inimigos externos sempre será uma necessidade em qualquer sociedade. Existem basicamente três opções para manter o exército: alistamento obrigatório, convocação com a possibilidade de contratar um substituto, e o sistema de mercado (um exército “voluntário”). Qual seria a forma mais justa ou eficiente? Pela ótica utilitarista, o exército voluntário parece a melhor forma, pois cada um vai servir somente com base na maximização de sua felicidade. Para os libertários, esta é a única forma justa, pois a alternativa envolve coerção. Mas alguns podem objetar que a escolha de servir não é tão voluntária assim, dependendo das alternativas existentes.
Como o autor explica, “Em lugares em que há muita pobreza e dificuldades econômicas, a opção por se alistar pode simplesmente refletir a falta de alternativas”. Seria, segundo ele, um caso de “coerção implícita”. Isso pode gerar uma situação injusta, quando quem decide ou não entrar em guerra está totalmente distante de quem pagará o maior sacrifício por ela. O autor cita que apenas 2% dos membros do Congresso americano têm um filho ou filha no serviço militar. Não seria um caso de injustiça?
Sandel compara ainda o serviço militar com o júri popular, convocado para deliberar sobre provas e leis. A ideia por trás disso é que todos os cidadãos sejam obrigados a cumprir este dever cívico para preservar a ligação entre os tribunais e o povo. Por este prisma, transformar o serviço militar em mercadoria, segundo ele, “corrompe os ideais cívicos que deveriam governá-lo”. Se o recrutamento militar é um serviço como outro qualquer, onde deve prevalecer a lei de oferta e demanda apenas, então não há argumentos contrários à contratação de mercenários estrangeiros também. O elo entre serviço militar e expressão de cidadania se perde por completo.
Como liberal, posso continuar defendendo o alistamento voluntário, como de fato defendo. Mas isto não quer dizer que a escolha seja simples e evidente, ou que não existam claramente “trade-offs” envolvidos. Os escândalos atrelados às empresas privadas militares, como a Blackwater, mostram que o caminho do mercado nesta seara pode produzir diversos problemas também. Sandel questiona: “O serviço militar (e talvez os serviços nacionais em geral) é uma obrigação cívica que todos os cidadãos têm o dever de cumprir ou é um trabalho difícil e arriscado como tantos outros (mineração, por exemplo, ou pesca comercial) devidamente regulamentados pelo mercado de trabalho?”
A questão pode ser vista de forma ainda mais abrangente: deve a lógica do mercado predominar em todos os casos? As pessoas devem ser livres, por exemplo, para assinarem contratos envolvendo gravidez e guarda do bebê? Mas, se até mesmo um bebê for visto como mercadoria, não estaremos depreciando seu valor? O mercado de barriga de aluguel se internacionalizou, e americanos, para reduzir custos, pagam para indianas pobres gerarem seus filhos em seu lugar. Mas quem pode negar que isso “aumenta a sensação de que a gravidez degrada a mulher ao transformar seu corpo e sua capacidade reprodutiva em meros instrumentos”? Existem ou não certas virtudes que transcendem as leis do mercado e o poder do dinheiro?
Outro ponto que gera muita discórdia é a questão da distribuição de renda. Para os libertários, cada um é dono de seu corpo e deve usufruir daquilo que produz. Para os mais igualitários, como Rawls, este ponto de vista é injusto, pois permite que a divisão de bens seja indevidamente influenciada por fatores arbitrários do ponto de vista moral. Seria uma distribuição determinada pelo resultado de uma “loteria natural”. O mérito e até mesmo o esforço são questionados por Rawls, que aponta inúmeros fatores aleatórios na determinação do resultado. Michael Jordan pode ter nascido com uma habilidade específica de arremessar bolas em uma cesta que, por puro acaso, é extremamente valorizada em sua sociedade. Até que ponto ele realmente merece sua fortuna?
A sorte teria um papel fundamental nos resultados, e Rawls propõe então o raciocínio a partir de um “véu de ignorância”, como se ninguém soubesse ex antequem será na sociedade. Qual seria o modelo justo então? Não seria um que prezasse mais a igualdade? O grande problema do igualitarismo é que ele assume uma visão arrogante de “justiça cósmica”, nas palavras de Thomas Sowell. Sim, a sorte exerce papel crucial nos resultados de uma sociedade livre. Mas quem vai determinar qual seria o resultado alternativo mais “justo”?
Pode ser que o talento inato de alguém ou o fato de que aquela sociedade naquele momento valoriza muito este talento sejam fatores aleatórios do ponto de vista moral. Mas não será menos aleatório decidir quanto do resultado obtido em trocas voluntárias deve permanecer com o talentoso em questão e quanto deve ir para terceiros. Isso sem falar dos incentivos inadequados que esta “justiça distributiva” produz. Talvez seja saudável derrubar o mito de que todo indivíduo bem-sucedido o seja por mérito próprio. Mas isto não quer dizer que um ato coercitivo de lhe tomar grande parte da riqueza seja justo.
Por fim, Michael Sandel retorna vários séculos até reencontrar Aristóteles e sua visão de télos ou propósito, finalidade. Segundo esta ótica, há uma natureza humana que deve ser respeitada, e cada pessoa deve seguir o papel adequado à sua própria natureza. O hábito deve fortalecer a virtude em cada um, e os homens devem procurar viver a “vida boa”, ou seja, aquela que expressa nossa natureza e oferece uma oportunidade para expandirmos nossas faculdades humanas. Para Aristóteles, o estado deve então promover a virtude. Mas, automaticamente, esta ideia gera calafrios. Qual virtude? Quem decide? A imagem de fundamentalistas religiosos usando a coerção para obrigar os “hereges” a viver de acordo com sua noção de virtude logo vem à mente.
Mas Sandel, apesar de compreender este alerta, pensa que o estado não deve ser neutro do ponto de vista moral. A liberdade de escolha, incluindo a liberdade de escolher seus próprios valores morais, não é ilimitada na opinião do autor. Ela não é uma base adequada para uma sociedade justa, pois sem as amarras morais de valores que não escolhemos, “não terão sentido para nós as muitas obrigações morais e políticas que normalmente aceitamos e até mesmo valorizamos”. Como exemplo, temos a solidariedade e a lealdade, a memória histórica e a crença religiosa, “reivindicações morais oriundas das comunidades e tradições que constroem nossa identidade”.
Sandel acredita na narrativa histórica como parte fundamental de quem somos, e é impossível buscar o bem ou praticar a virtude apenas como indivíduo. Nascemos com um passado, parte de quem somos. Nem tudo se resume ao contrato voluntário, ao acordo consentido. A maioria aceita que os filhos possuem certas obrigações morais em relação a seus pais idosos, sem que algum contrato tenha que ser redigido. Muitos aceitam o patriotismo (não confundir com nacionalismo) como um valor importante, colocando os compatriotas em um patamar diferente dos distantes estrangeiros.
A ideia de que estamos submetidos a laços morais que não resultam de nossas escolhas incomoda particularmente os libertários individualistas. “O repúdio a essa ideia pode levar-nos a rejeitar os apelos do patriotismo, da solidariedade, da responsabilidade coletiva e assim por diante”, escreve Sandel. Ele tenta mostrar que essa concepção de liberdade, qual seja, a ideia de que não estamos atados a nenhum laço moral que não tenhamos escolhido, é uma concepção equivocada. A propalada neutralidade moral na decisão de importantes coisas públicas não pode ser alcançada, segundo o autor, além de ser indesejável. Ignorar o debate sobre o que seja a vida boa é um equívoco para Sandel, que alerta: “Os fundamentalistas ocupam rapidamente os espaços que os liberais têm receio de explorar”.
Sandel conclui:
“Em vez de evitar as convicções morais e religiosas que nossos concidadãos levam para a vida pública, deveríamos nos dedicar a elas mais diretamente – às vezes desafiando-as e contestando-as, às vezes ouvindo-as e aprendendo com elas. […] É sempre possível que aprender mais sobre uma doutrina moral ou religiosa nos leve a gostar menos dela. Mas não saberemos enquanto não tentarmos. Uma política de engajamento moral não é apenas um ideal mais inspirador do que uma política de esquiva do debate. Ela é também uma base mais promissora para uma sociedade justa”.
Voltemos finalmente à questão inicial: deve a lei tentar promover a virtude ou ser neutra e deixar cada um escolher por conta própria? Enquanto liberal, eu confesso que fico incomodado com a opção aristotélica de que há uma finalidade objetiva para cada indivíduo e que as leis devem buscar a promoção da virtude. Saber que virtude é essa já representa, para mim, um desafio e tanto. Por outro lado, também não posso adotar a postura absolutamente individualista que rejeita qualquer possibilidade de trazer o tema da moral para algumas questões públicas. Certos valores tradicionais são fundamentais para a sociedade e inevitavelmente estarão refletidos nas leis, independente do consentimento de todos os cidadãos. Onde traçar, então, esta linha divisória? Não tenho resposta clara. Por isso chamamos de dilema. O que posso dizer é que prefiro errar pelo excesso de neutralidade moral das leis, pois tenho mais receio de uma ditadura moralista do que de seu extremo oposto, qual seja, uma sociedade atomista que rejeita qualquer obrigação moral além daquilo consentido pelo indivíduo.
Fonte: Ordem Livre, 02/01/2012
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