A procuradora-geral da República, Raquel Dodge, afirmou que uma lei sancionada pelo presidente Michel Temer criou uma “espécie de foro privilegiado” a militares das três Forças que venham a cometer homicídio contra civis e defendeu que o Supremo Tribunal Federal (STF) declare a inconstitucionalidade deste trecho da lei. É a primeira vez que Dodge se manifesta sobre a lei 13.491, em vigor desde outubro de 2017 e que ampliou as possibilidades de militares suspeitos de crimes comuns serem processados na Justiça Militar. O parecer de Dodge foi enviado nesta segunda-feira, no âmbito de uma ação direta de inconstitucionalidade relatada pelo ministro Gilmar Mendes.
A nova lei tem basicamente três especificações: a ampliação do escopo de crimes previstos no Código Penal Militar, permitindo que tanto militares federais quanto PMs sejam processados na Justiça militar; a manutenção de PMs em tribunais de júri, em casos de crimes dolosos contra a vida; e a instituição da Justiça Militar da União como competência para os casos de crimes dolosos contra a vida praticados por militares das Forças Armadas contra civis. A procuradora-geral da República emitiu um parecer restrito a este último ponto, defendendo a inconstitucionalidade de um novo foro aos militares de Exército, Aeronáutica e Marinha.
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“Fica claro que a alteração legislativa é instituição de espécie de ‘foro privilegiado’ em razão da natureza do cargo do agente e não do caráter militar da função exercida quando da prática do crime contra civil”, escreveu Dodge na manifestação encaminhada ao STF. “Observe-se que quando o militar de uma das Forças atua em comunidade para a garantia da lei e da ordem (como tem ocorrido no Rio), ali exerce o papel da segurança pública estadual, e não atividade tipicamente militar. Assemelha-se, para todos os fins, aos militares estaduais, que a exercem ordinariamente”, continuou a procuradora-geral. Ela considerou ser “ofensivo ao princípio republicano garantir privilégio de foro” nessa situação.
Com uma intervenção federal em curso, e a ampliação dos militares em atividades de segurança no Rio, a discussão ganha especial relevância no estado. Para Dodge, não resta dúvida sobre o predomínio de um tribunal de júri em relação à jurisdição militar. “A mesma lógica que expressamente impôs a competência do tribunal do júri para os crimes dolosos contra a vida praticados por militares dos estados contra civis deve ser transposta aos militares federais. Eventual tratamento diferenciado não encontra fundamento constitucional”, afirmou a procuradora-geral.
Para que se faça justiça às vítimas e se evite impunidade, conforme Dodge, é preciso que exista “independência dos órgãos de investigação”. “Ocorrida violação de direitos humanos, o primeiro direito a surgir é o direito à investigação pronta e justa, por órgão independente e imparcial. O desenho institucional do órgão julgador militar não permite afastar, objetivamente, qualquer dúvida que se tenha sobre a sua imparcialidade para o julgamento de seus pares”, escreveu a procuradora-geral. Ela citou duas sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos contra o Brasil, em que se determinou a esfera da Justiça comum para a análise de violações cometidas por PMs.
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Dodge concluiu que tanto a Constituição Federal quanto tratados internacionais de direitos dos quais o Brasil é signatário “impõem que a jurisdição penal militar tenha competência restrita ao julgamento de crimes envolvendo violação à hierarquia, disciplina militar ou outros valores tipicamente castrenses”. “O direito ao devido processo legal e a um julgamento justo por juiz competente, independente e imparcial (…) exigem que seja mantida a competência atual do tribunal do júri para julgar militares que cometerem crimes dolosos contra a vida de civis, mantendo-se a igualdade e o juiz natural para todos.”
Reportagem publicada pelo GLOBO em 7 de maio revelou que mais de mil processos envolvendo PMs, especialmente sobre tortura e abuso de autoridade, já foram deslocados desde o início da vigência da lei sancionada por Temer. No último sábado, o GLOBO também revelou que o Superior Tribunal de Justiça (STJ) já decidiu enviar casos de PM à Justiça comum, em situações de conflito de competência, o que já abriu precedente em decisão no próprio STJ.
Dodge não avançou sobre outros aspectos porque o foco da ação de inconstitucionalidade, movida pelo PSOL, é a questão dos homicídios praticados por militares das Forças Armadas. A procuradora-geral analisa desde outubro se ingressa ou não com uma ação de inconstitucionalidade no STF contra a lei como um todo, pedido feito por colegiados que funcionam no âmbito da Procuradoria Geral da República (PGR). A Associação dos Delegados de Polícia do Brasil (Adepol) também contestou a lei, em outra ação, que aguarda parecer de Dodge desde dezembro do ano passado.
Fonte: “O Globo”