Há 45 anos o etanol tornou-se estratégico na política energética: é alternativa aos derivados de petróleo e contribui para a melhoria ambiental. Desde então empresários se engajaram no Programa Nacional do Álcool (Proálcool), confiantes na diretriz governamental e na estabilidade das regras, que inicialmente estabeleceram paridade inferior a 60% entre o preço do etanol e o da gasolina. Em 1975, o Brasil produzia 500 milhões de litros anuais de etanol. Hoje, são 35 bilhões de litros. O Proálcool é, portanto, um esplêndido sucesso.
Mesmo assim, o setor passou por crises, a maioria por erros do governo, e não necessariamente por má gestão das empresas. Foi o caso da interferência do governo Dilma Rousseff nos preços da gasolina. Para controlar artificialmente a inflação impôsse o seu congelamento por mais de cinco anos. Isso não só causou prejuízos de centenas de bilhões de reais à Petrobrás, como quase exterminou a indústria do etanol e seus mais de 2 milhões empregos diretos e indiretos.
O setor vive agora semelhante risco de um futuro sombrio. De um lado, sofre o efeito baixista do impacto da covid-19 no mercado de petróleo e da significativa redução da demanda. De outro, falta clareza na política de preços da Petrobrás, em oposição à norma seguida desde 2016 pela qual havia reajuste periódico da gasolina com base nos preços internacionais e na taxa de câmbio, sem pressões do governo.
Em tais situações, o mecanismo para preservar objetivos estratégicos é a Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide). Ela tem sido adotada sempre que a sobrevivência do etanol é ameaçada por condições excepcionais de mercado. Por motivos insondáveis, todavia, o governo recusa-se a considerar essa hipótese.
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Afora essa grave recusa, o reajuste do preço da gasolina pela Petrobrás tornou gravosa a venda do etanol às distribuidoras de combustíveis. Assim, com seu poder de mercado, a Petrobrás pode afetar negativamente toda a cadeia produtiva de combustíveis, potenciais concorrentes seus na produção e na importação, além do setor de biocombustíveis. Pode também provocar prejuízos aos seus acionistas. Perdem a União, majoritária, e os acionistas minoritários, isto é, milhares de indivíduos e empresas que investiram suas poupanças na empresa.
Temos um paradoxo. O mesmo governo que valoriza o papel do setor privado, pode contribuir, inadvertidamente, para a falência de empresas que se dedicam a cumprir o papel estratégico atribuído pelo Estado. A nova política de preços dos derivados de petróleo permitiu à Petrobrás refazer-se dos prejuízos, enquanto os produtores de etanol se livraram do desaparecimento. A Petrobrás não divulgou a regra de fixação dos preços da gasolina em paridade com as cotações internacionais, mas sua lógica tem sido fundamental para dar segurança aos agentes que operam no setor e, mais do que isso, estimular investimentos.
Apesar da correção dessa política, importadores de combustíveis questionam a Petrobrás no Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade). Alegam que a companhia tem descumprido a paridade, vendendo combustíveis no mercado interno a preços inferiores aos vigentes no mercado internacional. Além do prejuízo à concorrência, praticar preços abaixo dos vigentes no mercado pode acarretar fuga de potenciais compradores de ativos da Petrobrás, prejudicando o plano de saneamento da empresa e, mais uma vez, seus acionistas.
Nesta hora atípica, é importante preservar as regras para evitar mais dúvidas num cenário repleto de incertezas. Espera-se que a Petrobrás garanta a manutenção da política de acompanhamento dos preços internacionais do petróleo e não sucumba a eventuais objetivos políticos. O ideal seria lançar mão legitimamente da Cide para resolver a atual falha de mercado, o que o governo prefere não fazer. Preservaria os incentivos de mercado ao etanol e ganharia arrecadação, importante neste momento. Se sucumbir, eventualmente, ao populismo na política de preços da gasolina, pode criar uma situação de crise para a qual não contribuíram os produtores de etanol, que continuam se dedicando a bem gerir suas empresas.
Em economias de mercado, como a perseguida nos anos recentes, a previsibilidade de regras é fundamental para nortear expectativas e decisões de investir. Neste momento é preciso separar a relação entre regras de mercado e as ações de política pública que se justifiquem nas circunstâncias. Na área de combustíveis pode haver a exploração do poder de mercado, decorrente do quase monopólio da Petrobrás. Também pode haver condutas para excluir concorrentes, sejam eles produtores ou importadores de gasolina, bem assim produtores de combustíveis renováveis como o etanol. O Estado precisa exercer o papel de redobrada vigilância no combate a abusos de poder de mercado, na fiscalização e na regulação da atividade.
Fonte: “O Estado de São Paulo”, 25/6/2020