*de Felipe Salto e José Roberto Afonso
O impacto das OCs na economia
O que são as operações compromissadas (OCs) realizadas pelo Banco Central (BC)? Não é assunto simples, mas é indispensável que seja bem conhecido, pelo forte impacto negativo que produz na economia. Trata-se de uma forma algo disfarçada de dívida pública. Por meio delas, o BC vende e compra títulos federais que estavam em sua carteira para, respectivamente, evitar excesso ou escassez de dinheiro em circulação. O compromisso está em recomprar (ou revender) esses mesmos títulos em data futura.
As OCs são remuneradas pela Selic, taxa fixada pelo BC, que persegue dois objetivos ao determiná-la. O primeiro, de olho na inflação, é regular a quantidade de moeda e crédito que circula na economia, elevando os juros para inibir a alta de preços. O segundo, de olho no mercado, é garantir a remuneração desejada pelas instituições financeiras para o financiamento do déficit público.
Uma contradição entre esses dois objetivos desponta no Brasil. A taxa de juros que o BC julga suficiente para conter a inflação determina diretamente o custo do Tesouro para remunerar os detentores de 46% do total de sua dívida (já em R$ 4,1 trilhões). Cria-se um círculo vicioso em que a meta de inflação condiciona o resultado fiscal, pois uma Selic mais alta produz mais despesas, aumenta o serviço da dívida e aprofunda o déficit fiscal. Na prática, as OCs ditam uma espécie de piso para a taxa de juros e assim asseguram ganhos para os investidores financeiros.
Atualmente o saldo de operações compromissadas ronda a casa de R$ 1,1 trilhão, ou 18% do produto interno bruto (PIB), recorde histórico. Ao final de 2006 eram apenas R$ 77,4 bilhões, ou 3,2% do PIB. Comparando: nos Estados Unidos a mesma operação (repurchase agreements ou “repos”) representa cerca de 1,7% do PIB, um décimo do registrado no Brasil, mesmo depois da crise global.
Gastos públicos
O aumento de gasto público não explicou o salto das OCs. A justificativa era enxugar o excesso de moeda nacional que entrava no mercado, decorrente da acumulação de reservas internacionais. Contudo, para ilustrar, nos nove primeiros meses desse ano as OCs cresceram em 2,1 pontos do PIB e, na contramão, o ativo externo líquido do Banco Central caiu em 4,3 pontos do produto. A crise faz explodirem as compromissadas enquanto despencam as reservas expressas em moeda local.
Outra razão para tantas OCs: desde 2012 o Tesouro optou por reduzir rapidamente a fatia de títulos (LFTs) com juros atrelados à Selic (não repondo os papéis vincendos, inclusive); o excesso de dinheiro em circulação precisou ser reduzido, o que foi feito pelo BC por meio de OCs. Mesmo com déficits, o Tesouro consegue acumular um caixa monumental (beira o R$ 1 trilhão) em razão do dinheiro recebido do próprio BC. Este remunera com Selic o caixa único lá depositado e também repassa ao Tesouro os ganhos cambiais com a valorização das reservas internacionais (quando o dólar sobe), mesmo que elas não tenham sido vendidas e o lucro não tenha sido realizado. Se o ganho é recebido à vista e em espécie, quando o BC tem prejuízo cambial, o Tesouro cobre com emissão de títulos, que engordam a carteira da autoridade monetária, e assim pode contratar cada vez mais OCs.
Resultado estranho ao que seria uma adequada política monetária: os detentores de dívida atrelada à Selic ganham quando ela sobe, pois ficam com mais recursos para investir ou gastar, na contramão do desejado quando se elevam os juros para combater a inflação. Em países onde o perfil da dívida é normal isso não se observa.
O pecado capital talvez esteja na ausência de um amplo mercado interbancário, no Brasil, para operações de troca de liquidez entre os próprios bancos. Na prática, os bancos não confiam muito nos seus pares e as sobras de caixa no fim do dia são trocadas com o Banco Central por OCs. Em tempos de crise, com crédito retraído, sobra ainda mais para aplicar no BC.
Retomada da economia brasileira será difícil
Enquanto as OCs não recuarem, será difícil a economia brasileira retomar a trilha do investimento, da produção e do emprego. A incerteza provoca uma corrida desenfreada para o dinheiro, que na economia moderna é pintado de dívida pública e, no caso brasileiro, ainda mais na forma de OCs. Estas remuneram muito bem, com liquidez, já que podem ser compradas hoje e vendidas amanhã e têm a melhor garantia possível numa economia – o governo e o Banco Central.
Se o dinheiro encontra um porto tão seguro, por que navegar em mares revoltos (com a pior recessão da História) e incertos, por que o trocar por investimento na produção e na infraestrutura ou por exportação? Não existe clareza de que haverá crédito suficiente e taxa de câmbio decente. Aliás, entre janeiro e setembro as OCs cresceram R$ 163 bilhões e a dívida bruta, R$ 402 bilhões. Enquanto isso, pretende-se que o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) antecipe R$ 100 bilhões do que deve ao Tesouro, esquecendo que ele próprio mandou o banco emprestar barato e a perder de vista – fora o desrespeito à responsabilidade fiscal e à boa governança corporativa.
Termômetro
Enfim, as OCs funcionam hoje como um termômetro que mede a febre da economia. Não basta mudar o governo e a equipe econômica e aprovar uma única medida para equacionar problemas estruturais e retomar o crescimento. Sem desatar os nós que amarram a política monetária e a fiscal, o investimento produtivo – que gera emprego – continuará a ser preterido em relação à alternativa de deixar o dinheiro no cofre do governo rendendo os mais altos juros do mundo e podendo ser sacado a qualquer momento.
*Respectivamente, economista, assessor parlamentar no Senado, autor do livro “Finanças públicas: da contabilidade criativa ao Resgate da Credibilidade” (Record, 2016); economista, pesquisador do IBRE/FGV e professor do IDP.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 9 de novembro de 2016.
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