Por volta de 1820, pouco antes da Independência, o Brasil era mais rico do que a Austrália e quase tão rico quanto a Suécia. Passados três séculos, australianos e suecos lideram os rankings de desenvolvimento humano e vivem em sociedades que estão entre as mais avançadas do mundo. No Brasil, o desenvolvimento ficou pela metade. Pelo critério do PIB per capita (a divisão do total produzido anualmente no país divido pelo número de habitantes), o país ocupa uma posição intermediária. Isso sem falar que, além de relativamente pobre, o Brasil permanece profundamente desigual.
Por que o Brasil ficou para trás? Por que não enriqueceu como os Estados Unidos, um país também de passado colonial escravocrata? Tais questões, há anos, ocupam o trabalho de historiadores, economistas e sociólogos. A teoria mais popular, formulada pelo economista Celso Furtado, é a de que a economia brasileira especializou-se na produção de mercadorias básicas, por isso industrializou-se tardiamente.
Na avaliação do economista Alexandre Rands Barros, entretanto, a especialização em produtos minerais e agrícolas explorados em grandes propriedades latifundiárias foi consequência, e não a verdadeira causa do atraso. A verdadeira causa da pobreza brasileira em relação a europeus e americanos foi o atraso no desenvolvimento do capital humano. É isso que o autor demonstra, de maneira convincente, no livro “Roots of Brazilian economic backwardness”, lançado recentemente, apenas em inglês, pela editora Elsevier.
Uma síntese de suas ideias pode ser vista em artigo publicado na “Revista de política econômica” no ano passado. Um exemplo das informações apresentadas: na segunda metade do século XIX, enquanto a alfabetização foi tornada obrigatória nos Estados Unidos, na Suécia e em muitos países europeus, o Brasil era um mar de analfabetos. A educação era algo exclusivo da elite. Suécia e Estados Unidos tinham 80% da população alfabetizada em 1870; no Brasil, mais de 80% dos homens e mulheres livres não sabiam ler nem escrever — e isso sem falar nos escravos. A baixa escolaridade representou um obstáculo ao desenvolvimento. Os trabalhadores eram incapazes de realizar trabalhos mais elaborados. Pesou também para o atraso o fato de o Brasil ter recebido um influxo de europeus mais preparados, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos. Os imigrantes foram e continuam sendo uma fonte essencial de transferência de conhecimentos e tecnologia. Segundo as estimativas apresentadas pelo autor, o diferencial na qualidade do capital humano dos imigrantes explica praticamente toda a diferença de renda per capita entre americanos e brasileiros no início do século XX.
Alexandre Rands Barros, que foi consultor econômico do candidato à presidência Eduardo Campos, é um grande estudioso do desenvolvimento. No seu livro anterior, “Desigualdades regionais no Brasil” (2011), mostrou como o atraso de Norte e Nordeste em relação ao Sul e Sudeste também decorre do diferencial na educação e do atraso no desenvolvimento do capital humano de maneira geral.
Apesar de muita gente ainda acreditar nas análises de Furtado e em seus derivados, como a teoria da dependência, para Rands, isso é um equívoco que custou caro: fez o país investir muito em políticas de desenvolvimento baseadas em incentivos e subsídios para a instalação de indústrias, o que não impediu o Nordeste de seguir pobre e atrasado. Por quê? O foco deveria ter sido no desenvolvimento do capital humano.
Rands Barros conversou com “Veja” sobre o seu novo livro.
Como surgiu a hipótese, demostrada muito bem no livro, de que foi a defasagem no capital humano que explicou o atraso no desenvolvimento brasileiro?
As escolas de economia vivem de modismos. Hoje existe uma vasta literatura acadêmica que enfatiza o capital humano como o fator que melhor explica o desenvolvimento dos países. Esse é o motor do crescimento econômico e, portanto, do desenvolvimento. Faltava, entre os pesquisadores brasileiros, uma aplicação aprofundada desse conceito. A ideia em si já é bastante consolidada na teoria econômica. No Brasil, ainda estamos demasiadamente presos à explicação de Celso Furtado (1920-2004) para o atraso brasileiro. Essa teoria fala da especialização econômica em produtos primários como a causa para a industrialização retardatária. Os economistas já deixaram de lado a teoria de Furtado e seguem a teoria dominante que enfatiza a importância do capital humano. Resolvi aplicar essa teoria para analisar as razões do atraso brasileiro.
E que fatores contribuíram para o atraso no capital humano?
Procurei mostrar com a formação da sociedade brasileira, a origem de seus povos, influenciou no acúmulo de capital humano.
Celso Furtado e seguidores da teoria da dependência não enfatizam a questão do capital humano. O atraso no capital humano, quando muito, parece ser tratado como consequência do baixo desenvolvimento, e não sua causa. É isso mesmo?
Realmente, o capital humano é um aspecto relegado ao terceiro plano. Para Furtado, quando houvesse a industrialização, naturalmente haveria o investimento em capital humano, como uma consequência, portanto, do desenvolvimento. Na verdade, a lógica é inversa. É o capital humano que, tendo sido construído e acumulado, vai determinar qual será a especialização.
Furtado usava também o exemplo do sucesso dos Estados Unidos para justificar a defesa de medidas protecionistas como maneira de incentivar a indústria. Mas os americanos tiveram políticas protecionistas por um período relativamente breve, e depois de a sua economia já ser uma das maiores do mundo, correto?
As políticas protecionistas são irrelevantes para explicar o desenvolvimento dos Estados Unidos. Isso nem arranha a casca. O desenvolvimento ou não da indústria e a especialização produtiva de um país são consequência, e não causas.
Falando em modismos, o modelo mais aceito para o desenvolvimento é o institucional. Os países são o fruto da qualidade de suas instituições. Esse modelo explica o atraso brasileiro em capital humano?
Essa visão é muito forte hoje entre os economistas brasileiros. O atraso institucional brasileiro herdado de Portugal é tido como a razão para o atraso econômico. Essa hipótese, na minha avaliação, carece de uma análise mais aprofundada. Eu, no meu trabalho, inverto um pouco essa lógica. Para mim, é a luta de classes que determina as instituições e que leva ao fim ao acúmulo de capital humano. Não coloca as instituições como fonte de equilíbrio na sociedade. É a luta de classes que gera um determinado equilíbrio e a partir desse equilíbrio as instituições são formadas.
O seu trabalho enfoca também o papel determinante da imigração no acúmulo de capital humano e no desenvolvimento. Esse é outro aspecto pouco ressaltado nas análises tradicionais sobre o atraso brasileiro. Quão importante foi a imigração?
Os dados que exponho no livro mostram que a diferença na imigração, ou seja, no capital humano dos imigrantes, explica praticamente toda a diferença de renda que havia entre o Brasil e os Estados Unidos em 1900. Os dados, para mim, foram impressionantes. Fiquei surpreso com o poder da imigração para explicar o atraso relativo do Brasil. Apenas a diferença na composição dos imigrantes entre os dois países explica 95% da diferença da renda per capita registrada ao redor do ano 1900.
Recentemente, houve um avanço em matrículas, mas a qualidade do ensino tem ficado a desejar. O Brasil está recuperando o atraso no que diz respeito à educação?
Houve uma melhora do governo Fernando Henrique em diante, não podemos negar. Com a estabilização da democracia, a parte da sociedade menos privilegiada passou a ter mais força política. Hoje o investimento brasileiro em educação, como proporção do PIB, é maior do que na maioria dos países europeus. No passado, as populações mais pobres tinham pouco poder de mobilização. Não conseguiam pressionar o poder público. A elite brasileira foi muito esperta. Instituiu o ensino superior gratuito para os seus filhos, mas não investiu no ensino público básico. Para deixarmos de ser um país atrasado, precisamos desmontar esse tipo de privilégio.
Entre os historiadores paulistas, existe uma tradição, desde o trabalho de Caio Prado Júnior (1907-1990), de apontar a estrutura fundiária, particularmente os latifúndios, como um determinante do atraso brasileiro. Concorda?
Mais uma vez, considero os latifúndios uma consequência, não a origem do atraso brasileiro. A realidade é que os latifúndios eram uma estrutura de exploração eficiente, dado o nível de organização dos produtores. É bom lembrarmos que o Brasil tinha fronteiras agrícolas abertas. Mas por que na margem, onde havia fronteira aberta, as pessoas não se instalavam ali e exploravam a terra de maneira eficiente? Na verdade, as pessoas que se instalavam nessas áreas possuíam um baixíssimo capital humano. Não tinha condições de explorar a terra de maneira competente. Esses historiadores afirmam que os latifúndios impediram a formação de uma classe média rural. Ora, essa classe média rural não se formou por causa da deficiência no capital humano daqueles agricultores. Como os fazendeiros não dispunham de infraestrutura adequada, as propriedades consequentemente tinham de ser extensas para prosperar. São Paulo, no passado, era composto por grandes latifúndios cafeeiros. Quando chegaram os imigrantes mais qualificados, eles conseguiram fazer arranjos para adquirir propriedades.
A longo prazo, qual sua avaliação para o país?
Vivemos uma crise série, motivada pelo fato do governo ter imaginado que o Estado pode tudo. Mas, quando sairmos da crise, há uma força dos segmentos tradicionalmente excluídos. Esses setores se libertaram de uma hegemonia de elites locais e votam com maior consciência. Saúde e educação serão questões importantes. São exigências dessa população. A qualidade do ensino será certamente uma das grandes demandas da sociedade. Mas é importante os governantes compreenderem que para desenvolver o país não é necessário violentar as leis de mercado, ao contrário da visão pregada por Celso Furtado. É preciso atuar em outras áreas, para que as leis de mercado contribuam para o desenvolvimento.
Fonte: “Veja”, 25 de setembro de 2016.
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