A Lei 12.850/2013 é absolutamente lacônica com relação às consequências jurídicas de uma eventual revisão ou rescisão de um acordo de colaboração premiada inicialmente homologado. O silêncio da lei – que poderia ser tido como um lapso do legislador – é, na verdade, uma medida de proteção à utilidade do processo. Sem cortinas, o Direito Penal trabalha com casos concretos, sendo a particularidade de cada situação delitiva um elemento essencial à justa aplicação da lei. Por assim ser, era absolutamente impossível ao legislador prever as infinitas consequências de um acordo revogado total ou parcialmente, cabendo à prudência judicial verificar, caso a caso, os efeitos jurídicos (materiais e processuais) de cada situação estabelecida.
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No entanto, o legislador deixou um norte sinalizado. A lei foi clara ao determinar que as partes podem se retratar da proposta, caso em que as provas autoincriminatórias não poderão ser utilizadas “exclusivamente” em desfavor do colaborador (artigo 4.º, §10, da Lei 12.850/2013). Ou seja, verificada uma causa de ineficácia superveniente, o conteúdo probatório revelado pelo delator não poderá ser utilizado unicamente contra si, mas mantém a validade para as práticas delitivas capitaneadas pela organização criminosa. Logo, o material probatório fornecido voluntariamente pelo delator mantém sua força probante entre os elos da cadeia delitiva.
Interessante destacar que o artigo 157 do Código de Processo Penal, seguindo diretriz constitucional específica, classifica como inadmissíveis as provas ilícitas, determinando o seu cogente desentranhamento do processo. Tal ilicitude probatória também se estende às “provas derivadas”, salvo quando não evidenciado o nexo de causalidade entre umas e outras, ou quando as derivadas puderem ser obtidas por uma fonte independente. Em outras palavras, eventual nulidade ou revisão de um acordo de delação premiada não prejudica as provas materiais, autônomas e independentes, fornecidas pelo delator. Até mesmo porque, sendo a delação um “meio de obtenção da prova” (artigo 3.º), isso está a significar que tal prova já existia no mundo dos fatos, tendo sido a colaboração premiada um mero veículo de obtenção.
Naturalmente, os elementos probatórios formados pela delação em si – por exemplo, o depoimento ou testemunho do delator – estarão total ou parcialmente prejudicados, guardada uma relação de simetria com o grau de revisão do que fora inicialmente acordado. Todavia, a própria Lei 12.850/2013 já prevê que nenhuma sentença condenatória será proferida com fundamento apenas nas declarações de agente colaborador (artigo 4.º, §16). Ou seja, mesmo em acordos válidos, a fala do delator despida de suporte probatório material consequente é juridicamente vazia e ineficaz.
A discussão constitucional seria de maior envergadura para a remota hipótese de uso dissimulado ou fraudulento do instituto da colaboração premiada pelas forças persecutórias do Estado. Imagine-se o caso que a autoridade acusatória, mesmo ciente da mentira ou omissões do delator, resolva dar continuidade ao ato apenas para recolher documentos e provas, vindo lá na frente a suscitar a nulidade do acordo por quebra do dever de veracidade. Nesse caso, poder-se-ia ventilar a hipótese de um desempenho inidôneo ou desleal da prerrogativa acusatória com consequente violação à garantia constitucional do devido processo legal.
Sobre o ponto, o alto magistério da suprema corte é firme no sentido de que “o poder de acusar supõe o dever estatal de provar licitamente a imputação penal”, pois é injustificável, “sem base probatória idônea, a formulação possível de qualquer juízo condenatório, que deve sempre assentar-se – para que se qualifique como ato revestido de validade ético-jurídica – em elementos de certeza” (Habeas Corpus 73.338).
As discussões que virão serão densas e juridicamente complexas. Caberá à sabedoria dos tribunais, diante das particularidades de cada caso concreto, interpretar a lei e estabelecer o justo. Embora ainda muito longe do fim, desde já fica sobressalente a lição de que o açodamento acusatório destoa da necessária prudência exigida pelo Estado de Direito. Um sistema criminal eficaz não é o que condena muito, mas o que pune com rigor técnico, decência de fundamentos jurídicos e inteligente aplicação da pena. Por tudo, entre a infinitude do céu e as múltiplas possibilidades da terra, temos o agir de uma humanidade imperfeita. E, nas sombras do drama humano, a busca da justiça deve ser um equilibrado instrumento de luz.
Fonte: “Gazeta do Povo”, 14/09/2017
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