Há dois movimentos opostos no ambiente político e jurídico de Brasília. Um tem o objetivo de reforçar o processo de combate à corrupção. O outro, de torná-lo tão complicado e confuso, a ponto de ser impossível.
O primeiro movimento é simples: trata-se de aprovar no Congresso legislação que determine a prisão após sentença em segunda instância. O objetivo é claro: trata-se de responder à decisão do STF que, por 6 votos a 5, determinou que o condenado só pode ser preso após julgados todos os recursos, em todas as instâncias. Na teoria, seria a prisão em quarta instância.
Os garantistas, dizendo-se defensores do sagrado direito humano de defesa, dizem que a norma civilizada determina que ninguém pode ser preso antes do julgamento do último recurso. Se isso for verdade, eis aqui uma relação de países bárbaros: Estados Unidos, Canadá, Inglaterra, Alemanha, França e Espanha. Lá, condenados vão em cana em primeira instância.
Na verdade, tirante o democrático e civilizado Brasil, os demais países da ONU também caem na barbárie, pois adotam a regra de prisão em primeira ou segunda instância, como tem observado com notável clareza, e insistência, o jurista e escritor José Paulo Cavalcanti Filho.
Ficamos assim, portanto: só o Brasil das quatro instâncias respeita o direito universal de defesa. Na prática, porém, é um tanto diferente: criminosos ricos, de colarinho branco ou bem colocados nas instituições, capazes de contratar advogados habilidosos o suficiente para manipular a infinidade de recursos e recursos de recursos dos processos brasileiros, além de contar com, digamos, a simpatia de muitos juízes, nunca vão em cana. Os outros, ora, quem se importa?
Mas o pessoal que pretende melar o combate à corrupção quer mais. Saíram recentemente com duas espertezas — quer dizer, espertezas, não, pois o sujeito pode ser esperto para o bem. No caso, são duas safadezas.
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A primeira foi a introdução do juiz das garantias. Há uma interessante discussão jurídica sobre o sistema, cujo objetivo seria dar mais segurança ao julgamento. Resumindo: o juiz das garantias prepara o processo — determina busca e apreensão, manda produzir as provas etc. Estando tudo pronto, o processo passa para o juiz de instrução e julgamento.
Parece bom, mas não para o Brasil do momento. Nem a intenção foi aperfeiçoar o sistema: foi simplesmente criar uma quinta instância, como notaram Cavalcanti Filho e Modesto Carvalhosa.
Basta que o juiz de julgamento peça novas provas e novas medidas cautelares. Quer dizer, a primeira instância se transformará em duas e, lógico, vai demorar ainda mais.
Além disso, como foi uma sacada de última hora, não ficou nada claro como o sistema seria introduzido e para quais instâncias valeria. Tanto foi assim que o presidente do STF, Dias Toffolli, que havia apoiado a medida, adiou sua aplicação por seis meses. Estava na cara que não havia a menor condição da entrada em vigor em 23 de janeiro próximo. O objetivo só podia ser um: criar confusão, paralisar os processos logo na dupla primeira instância.
Moro havia pedido o veto a esse dispositivo. O presidente Bolsonaro não vetou. O processo de Flávio Bolsonaro está na primeira instância. Bom, ficou para daqui a seis meses, mas o caso continua aí.
A segunda safadeza foi descrita na coluna de Merval Pereira na edição de ontem. Resumindo: com o fim do foro privilegiado, todos os processos envolvendo deputados e senadores vão para a primeira instância. Mas os parlamentares estão articulando uma ressalva para determinar que o juiz de primeira instância não poderá decretar medidas cautelares contra deputados e senadores. Não poderão, por exemplo, determinar quebras de sigilo ou prisão preventiva. Direto ao ponto, não se poderá produzir provas.
Agora, acrescente aí o juiz das garantias. Se este não poderá determinar as medidas cautelares, como o juiz de julgamento julgará? Absolvição certa — e aí já vai bem para as instâncias infinitas.
Tudo considerado: o combate à corrupção será mantido se o Congresso aprovar a prisão em segunda instância e derrubar todo o resto, juiz de garantias e a garantia extra a deputados e senadores.
Fonte: “O Globo”, 16/1/2020