Na semana passada um inesperado aperto de crédito atingiu os bancos americanos.
A taxa de juros das operações compromissadas, o repo rate, saltou de 2% para 10%, muito acima do teto determinado pelo banco central americano (o Fed) para o juro de curto prazo, que estava em 2,25% ao ano. Esse abalo surpreendente me remeteu ao passado.
Há 12 anos, no dia 9 de agosto de 2007, abri a planilha com meu painel de controle repleto de indicadores financeiros e empalideci. O principal indicador de risco que eu acompanhava havia saltado de 50 pontos no dia anterior para mais de 100 pontos! Ato contínuo, o Banco Central Europeu injetou US$ 130 bilhões no setor bancário. O mercado não deu importância. No dia seguinte, a história não estampou a capa dos jornais financeiros.
Foi útil: não se ganha dinheiro com notícias de capa de jornal, mas com notícias da página 15 em vias de migrar para a capa.
Naquela quinta-feira iniciou-se o desenrolar em câmara lenta da maior crise internacional desde a Grande Depressão da década de 30: a “crise de 2008”.
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Entre mais de 20 indicadores, eu monitorava com lupa o risco do setor bancário via o outrora obscuro Ted Spread, usado pelos diminutos e pouco charmosos departamentos de “money market” dos bancos de Wall Street e da City de Londres.
Esse spread —diferença entre a taxa que bancos emprestavam entre si e a taxa livre de risco—, indicava em tempo real o risco de crédito dos maiores bancos internacionais bem como a disponibilidade de caixa no mercado interbancário.
O interbancário é o mercado de empréstimos de curtíssimo prazo no qual bancos negociam entre si sobras e furos de caixa em bases diárias. Aqui no Brasil é o mercado que forma a taxa Selic (de empréstimos com garantia de títulos) e a do CDI (sem garantia).
Por se basear naqueles empréstimos sem garantia, o Ted Spread mede em particular o risco que os bancos emprestadores enxergam nos demais bancos tomadores. Quanto mais alto, maior o risco.
O mercado interbancário é como o encanamento da economia. Se a água, a liquidez, deixar de fluir livremente nesse imenso condomínio integrado e mutuamente dependente que utiliza dólares, a economia sofrerá um baque tempo depois.
No sentido inverso, se houver um excesso de impurezas da economia sendo introduzido nos canos (um alto estoque de dívidas podres, por exemplo), o fluxo de liquidez tende a se interromper, o custo do serviço dos encanadores momentaneamente dispara (a taxa de juros sobe), e a economia mundial sofre um infarto. É o que prevê a Tace, teoria austríaca dos ciclos econômicos.
A questão é identificar se a anomalia da semana passada pode ser resolvida com um mero desentupidor ou se revela problemas estruturais graves, como vazamentos em massa.
Minha suspeita é que há complicações estruturais. A colossal liquidez acumulada desde 2009 nas caixas d’água de bancos, companhias americanas, fundos soberanos e bancos centrais, algo como US$ 10 trilhões adicionais criados a partir das políticas de afrouxamento monetário (QE), não foi capaz de impedir a interrupção abrupta do fluxo de liquidez. Não faz sentido.
É bem verdade que o Fed vinha enxugando parte do que injetou anteriormente, reduzindo o caixa dos bancos em US$ 1,5 trilhão. Mas ainda há enorme liquidez ao redor do mundo.
Por enquanto o Fed tem enfrentado o distúrbio com um desentupidor gigante, um afrouxamento de liquidez light.
Suspeito que em breve voltará ao afrouxamento maciço (QE) para inundar os canos, que entretanto seguem vazando. Após a “anomalia” de agosto de 2007, levou-se um ano para estourar a crise.
Quanto tempo levará agora?
Fonte: “Folha de São Paulo”, 25/9/2019