Clara quando diz que não pode ser emendada durante intervenção federal, a Constituição é omissa quanto à tramitação — sem chegar à mudança do seu texto — de uma proposta como a reforma da Previdência nesse período. Segundo advogados ouvidos pelo “Globo”, não seria ilegal, por exemplo, submetê-la ao plenário da Câmara. Mesmo assim, os especialistas consideram que a manobra seria desaconselhável, e um deles classificou de “imoral” eventual continuidade da tramitação.
Segundo o advogado constitucionalista João Antonio Wiegerinck, a Constituição não apresenta qualquer empecilho formal à tramitação da reforma da Previdência durante uma intervenção. O que ela diz, observou o especialista, é que seu texto não pode ser alterado nesse período – ou seja, impede que a PEC seja promulgada. Mesmo assim, Wiegerinck afirma que a continuidade da tramitação do texto representaria um ato imoral.
— Estão usando uma omissão da Constituição para um ato imoral. Embora não possamos falar em ato criminoso ou ilegal, trataria-se de uma fraude política. É triste que usem a lei maior dessa maneira – afirmou o professor da Escola Paulista de Direito (EPD) e professor convidado da Mackenzie.
O parágrafo primeiro do artigo 60 da Constituição diz apenas que ela não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal, de estado de defesa ou de estado de sítio. O texto não faz menção à tramitação de emendas constitucionais nessas circunstâncias. Esse vácuo gera conflito de interpretações. Na sexta-feira, um integrante do Supremo Tribunal Federal (STF) disse ao “Globo” que a reforma não pode sequer tramitar enquanto o decreto estiver em vigor; outro ministro do mesmo Supremo, porém, observou que o tribunal nunca decidiu se uma PEC pode tramitar nessas condições.
A reforma da Previdência já foi aprovada pela comissão especial da Câmara e agora precisa ir a plenário.
Para Wiegerinck, é preocupante a estratégia do governo de suspender a intervenção federal no Rio para votar a Previdência quando tiver os votos necessários para aprová-la. Segundo o advogado, embora também não haja impedimento formal a isso, ficaria flagrante nesse caso o caráter político da intervenção.
— É perfeitamente possível e legal fazer a revogação de um decreto e depois voltar com outro, mesmo que seja bastante semelhante ao anterior. O problema é que isso terá motivação exclusivamente política. E o discurso está muito claro: o governo já falou que só revoga para votar a Previdência se tiver os votos – ponderou o advogado. — Não é inconstitucional nem ilegal, mas seria imoral. A intervenção é muito séria para ser tratada dessa forma, estamos falando do afastamento das pessoas.
Maurício Tanabe, sócio do escritório Campos Mello Advogados, também observou que a Constituição é omissa quanto à tramitação da PEC em período de intervenção. Na opinião do advogado, porém, seria mais prudente que a PEC não tramitasse nesse momento.
— A Constituição diz somente que ela não pode ser emendada durante uma intervenção. Mas ela é omissa quanto aos trâmites. Uma posição menos conservadora nos levaria a crer que podemos tomar todas as medidas de tramitação de uma PEC enquanto se espera o término da intervenção. Já uma posição mais conservadora, e até mais recomendável em momentos turbulentos como os de hoje, diria que a PEC não deve andar nesse período.
Mas Tanabe esclareceu que, independentemente dessas interpretações, não há qualquer empecilho à articulação política pela aprovação da reforma da Previdência. Segundo ele, também não seria ilegal revogar a intervenção apenas para aprovar a Previdência.
— Se a intervenção é uma necessidade urgente, a reforma da Previdência também é. Não vejo problemas nisso, caso a revogação seja feita com cuidado, pois existem os elementos necessários para isso. O Executivo precisa pedir a revogação e submetê-la à Câmara. O presidente da Casa pode, inclusive, consultar o Supremo sobre o assunto — disse. — Assim, tudo seria feito seguindo a regra do regime interno da Câmara e também a própria Constituição.
‘FRAUDE CONSTITUCIONAL’
O professor titular de Direito Constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj) Daniel Sarmento, porém, afirma que a Constituição é muito explícita ao proibir qualquer emenda durante a vigência de um decreto de intervenção e critica a proposta do governo de suspensão temporária da intervenção. Ele classificada a manobra de “tentativa de fraude constitucional”:
— Esse processo de parar um decreto e voltar mais parece uma fraude constitucional. A gente não vai sair da crise se não levar a Constituição a sério. Acho espantoso que o presidente Temer, que foi professor de Direito Constitucional, proponha uma fraude constitucional. E é confessada. É como se fosse dar um jeitinho, é tudo o que a gente não precisa.
Na avaliação de Sarmento, a razão para a proibição de emenda constitucional é garantir que qualquer mudança só seja feito em um momento de tranquilidade institucional, ou seja, em que não há turbulências.
— Emendar a Constituição é algo muito sério, tem que se dar em um ambiente de normalidade institucional. O que se quis garantir é que as mudanças só ocorressem em períodos de tranquilidade institucional.
Há juristas que defendem que o governo poderia ter recorrido ao mecanismo de “garantia da lei e da ordem” para atuar no Rio de Janeiro e, ao mesmo tempo, permitir alguma mudança na Constituição. O procedimento de intervenção é usado quando há oposição do estado, o que não ocorreu no caso do Rio.
Fonte: “O Globo”