A desproporcional distribuição de recursos distorce a relação entre pessoas e instituições de aplicação da lei
Desenvolvimento não mais parece ser uma meta inatingível para os brasileiros. Nos últimos 16 anos o Brasil tem dado sinais de que, quando age de forma consistente e persistente, é capaz de mudar as coisas. Deixando de lado as disputas partidárias, fomos capazes de estabilizar a economia, domar a irresponsabilidade fiscal dos Estados e ampliar as bases institucionais para o investimento público e privado. Mais do que isso, avançamos no combate à pobreza e na aceleração do crescimento.
Esse novo círculo virtuoso de desenvolvimento econômico e social não tem sido acompanhado por um fortalecimento de nosso estado de direito, o que, aliás, não é um privilégio brasileiro, mas um fenômeno latino-americano.
O que chama a atenção no caso brasileiro é o descompasso entre nossa confiança quase eufórica na economia e nossa forte desconfiança nas instituições, nas leis e nos outros cidadãos. Se tomarmos a sério as informações produzidas pelo último relatório do Latinobarômetro, podemos verificar que brasileiros e chilenos são os que mais confiam na condução econômica dos seus países. Mais significativo ainda é o fato de que nos encontramos em primeiro lugar no continente quanto à confiança de que nossos filhos terão um futuro melhor. Mas esse otimismo se contrapõe à nossa desconfiança no direito. Nos encontramos entre os que mais desconfiam de que a lei seja aplicada de forma igualitária. Entre os 18 países pesquisados, estamos em último lugar em relação à confiança intersubjetiva. Nos vemos como um país de malandros.
O ponto central dessas constatações não se restringe ao aumento dos custos transacionais no Brasil, impedindo que a expansão econômica do Brasil seja ainda maior. Esses dados indicam que vivemos sob angústia e o medo de termos nossos direitos violados pelo nosso vizinho, pelo traficante ou pelas autoridades que aplicam a lei de forma distorcida. Há, assim, uma nação cada vez mais contente economicamente, mas que se sente acuada pela violência e pelo arbítrio.
Esse conjunto de percepções lamentavelmente encontra respaldo na realidade. Todos os dias presenciamos, como vítimas, espectadores ou autores, pequenas e grandes afrontas ao estado de direito, desde as incivilidades no trânsito até os grandes esquemas de corrupção, passando por sistemáticas violações de direitos humanos e culminando com uma criminalidade de proporções dramáticas: na última década quase um milhão de pessoas foram vítimas de homicídio no Brasil. Até o presidente zomba do direito quando é reiteradamente multado pela Justiça Eleitoral. Mesmo quando conseguimos aprovar uma lei voltada a afastar pessoas condenadas da política, não sabemos se a lei vai pegar.
Muitas podem ser as explicações para essa situação de descompromisso com a lei. O respeito ao direito está primariamente associado à existência de relações de reciprocidade dentro de uma sociedade. A percepção generalizada de que todos são sujeitos de direitos e, portanto, devem ser tratados com igual respeito e consideração, seja pelos demais membros da comunidade, seja pelas autoridades responsáveis pela aplicação da lei, é o elemento fundamental para que vivamos sob o domínio da lei.
A reciprocidade, porém, dificilmente é alcançada em sociedades marcadas pela profunda e persistente desigualdade, como a brasileira. Esse tipo de desigualdade provoca a invisibilidade da parcela mais carente da população e a imunidade daqueles que se encontram numa posição mais vantajosa. Como já perceberam os economistas, o estado de direito tem um alto custo de acesso. A desproporcional distribuição de recursos distorce a relação das pessoas com as instituições de aplicação da lei.
O respeito ao direito também está diretamente ligado à integridade e eficiências das instituições. O corporativismo e a falta de transparência têm afastado nossas instituições da realização de suas tarefas públicas. Uma das maiores virtudes de um regime constitucional é armar as instituições para que as expectativas criadas pelo direito se realizem sem sobressaltos, de forma que sejam expandidas as esferas de autonomia de cada um. E isso não ocorre quando os interesses corporativos se sobrepõem ao interesse da coletividade.
Dada a proximidade entre os discursos de desenvolvimento dos dois principais candidatos à Presidência da República, tanto no que se refere às políticas macroeconômicas, como às políticas sociais, fica a pergunta: como eles incorporarão a dimensão da Justiça e do Direito aos seus projetos? Afinal é impossível falar em desenvolvimento hoje sem levar em consideração essas dimensões essenciais de qualquer processo civilizatório.
Sabemos que hábitos e praticas socialmente arraigadas são difíceis de serem alterados. Reformas institucionais constituem um dos poucos mecanismos pacíficos para se desestabilizar interesses ilegítimos e dar um curto-circuito em agentes que se negam a cumprir suas obrigações. Apesar disso, nenhum dos candidatos chegou a apresentar, até o momento, um consistente programa de reformas voltado ao desenvolvimento de nosso estado de direito.
Fonte: Jornal “Valor econômico” – 27/08/10
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