A sensação de muitas pessoas de que o Brasil está vivendo uma escalada de violência sem precedentes associada com protestos e outras formas de manifestação pública acabou de ser confirmada pela ação de membros do Black Bloc no Rio de Janeiro e em São Paulo na tentativa de transformar a Copa do Mundo “num caos”, como disseram. O risco tem de ser levado a sério porque os autores da ameaça, embora não sejam ainda aliados, estão procurando o apoio do crime organizado.
O clima vem crescendo desde as manifestações legítimas de 2013, distorcidas, porém, por atos de vandalismo, ataques ao patrimônio público e privado, queima de ônibus, greves selvagens, agressão a policiais e o assassinato de um cinegrafista. A violência deve-se à ação de grupos minoritários como os black blocs e outros, mas também ao discutível desempenho das forças de segurança a quem cabe garantir a lei e assegurar os direitos dos cidadãos, mas que ultrapassam em muitas ocasiões os limites do legal, cometendo excessos inaceitáveis e estimulando o recrudescimento dos protestos.
Em que pese ferir a normalidade democrática e tensionar um período que prenuncia uma disputa eleitoral extremamente acirrada, a situação não tem encontrado uma resposta adequada de parte do Estado e das autoridades públicas. Uma das consequências disso é a crescente percepção de amplos segmentos da sociedade de que, sediando um evento planetário que atrai a atenção do mundo para o Brasil, o país está, contudo, tomado por um “clima estranho”. A Copa começou, mas as pessoas não estão seguras do rumo que tudo vai tomar e estão preocupadas com a sua segurança.
O advogado criminalista Arnaldo Malheiros Filho sintetizou uma das faces mais importantes da questão em texto recente: “Um dos piores restolhos do entulho autoritário é essa ideia generalizada de que a democracia é um regime no qual não é necessário cumprir a lei, porque cada um é ‘livre’ para fazer o que bem entender, pouco se importando se isso vai ou não violar direitos dos outros”.
A democracia, contudo, é precisamente o regime do império da lei, em que se espera que as pessoas se submetam às regras de convivência social porque, como ensinou Rousseau, a legitimidade das leis deriva da escolha dos próprios cidadãos, ainda que por intermédio de representantes; mas também porque é na submissão à lei que está a raiz do princípio segundo o qual todos devem receber tratamento igual quanto aos seus direitos, independentemente de diferenças de gênero, cor da pele, condição social, econômica, religião ou ideologia. Ou seja, no Estado Democrático de Direito ninguém está acima da lei, mas, em contrapartida, todos são detentores de direitos e prerrogativas inalienáveis.
A situação é complexa, no entanto, porque, para operar como efetiva proteção de direitos dos cidadãos e, ao mesmo tempo, como controle de abusos e fonte de legitimidade da ação dos responsáveis pela ordem, o império da lei tem de estar consolidado, ser amplamente reconhecido pelas pessoas e visto como justo, sem o que sua eficácia padece e a qualidade do regime democrático é afetada. Por outras palavras, a efetividade do império da lei depende de que as leis sejam claras, prospectivas, amplamente conhecidas, estáveis, baseadas em regras legítimas, aplicáveis a todos e administradas por um Judiciário independente, cujo acesso seja garantido à maioria dos cidadãos. Para servir de orientação à conduta das pessoas as leis também precisam ser facilmente assimiláveis, sem exigir excesso de conhecimento técnico, e claramente percebidas como guias do comportamento e da convivência social. Isso impõe enormes exigências numa sociedade em que a educação ainda não é um direito universal, e cuja qualidade é muito discutível.
Mais ainda: as leis não podem servir de arma aos governantes ou de proteção aos poderosos, como sugeria a frase atribuída a Vargas: “Para os amigos tudo, para os inimigos a lei”; nem podem servir de abrigo para a impunidade que o ritual infindável de recursos judiciais sugere no caso brasileiro. Elas têm de ser vistas como um anteparo universal, impessoal, a serviço da justiça e da probidade, sob a tutela de tribunais defendidos da influência dos poderosos. No Brasil, no entanto, o descumprimento da lei é um dado da realidade, distorções como a corrupção matam a esperança de que a vida pública se paute pelo interesse público. E, principalmente, o abuso de autoridade, as agressões injustificadas e até mesmo a morte de inocentes por forças de segurança nem sempre são punidas ou vistas como se pudessem ser. Há um sentimento generalizado de que as leis e as regras só se aplicam aos mais pobres e aos desprotegidos.
Isso gera uma cultura de descrença e de desconfiança nas instituições e, ainda que não justifique por nada o uso da violência ou o desrespeito à lei, aponta para a explicação da situação. Uma pesquisa que coordenei recentemente na USP dá pistas para entender o quadro: nada menos que 79% dos entrevistados consideram não haver igualdade perante a lei no país, 64% não têm confiança no Judiciário, 76 % não confiam no Congresso Nacional e 86% não confiam nos partidos políticos. A lei existe para todos, mas a percepção das suas falhas se alimenta da crise das instituições de representação: 45% acham que a democracia pode funcionar sem o Congresso e 46%, sem os partidos. Muitos sentem que não têm meios eficazes de se fazer ouvir, creem que podem fazer justiça pelas próprias mãos ou só têm a violência para se expressar. O resultado é muito perigoso para a democracia.
Resta saber se os que aspiram a dirigir o país vão tratar disso no debate eleitoral deste ano.
Fonte: Estadão, 18/6/2014
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