O debate que se instaurou no Brasil sobre a possibilidade de publicação de obras biográficas sem o consentimento dos personagens biografados tem sido pautado por uma falsa dicotomia entre liberdade de expressão e direito à privacidade.
Não é disso que se trata. A questão é mais singela do que um suposto dilema filosófico entre a livre circulação de ideias e informações e a soberania do individuo sobre sua vida privada. O problema em discussão é o seguinte: tem o indivíduo o monopólio sobre a narrativa da sua trajetória de vida? Ao exigir a prévia autorização do biografado (ou de seus herdeiros) para a divulgação de escritos a seu respeito, o art. 20 do Código Civil responde que sim.
Note-se que não se está aqui a cogitar do conteúdo da obra; a autorização pode ou não ser concedida ao inteiro alvedrio do personagem retratado, sem relação necessária com a proteção de sua intimidade. Cuida-se apenas do agrado ou desagrado do protagonista dos fatos com a versão do biógrafo.
Embora editado já na plena vigência da Constituição democrática de 1988, o Código Civil (que é uma lei ordinária) criou um monopólio das autobiografias no país. Salvo com o beneplácito, quase sempre oneroso e parcial do biografado, as heterobiografias são um gênero virtualmente banido entre nós.
Além das cifras vultosas negociadas muitas vezes por puro interesse argentário, a lei em vigor gera ao menos dois outros efeitos nocivos ao chamado livre mercado de ideias: (I) um efeito silenciador, que condena anos e anos de pesquisas sérias e responsáveis dos autores aos escaninhos das editoras; (II) um efeito distorsivo, resultante da filtragem de documentos e depoimentos pelo crivo do biografado.
Surge então o argumento da preservação da vida privada dos biografados. Trata-se de um falso argumento. Ninguém está a defender a prática de atos ilícitos por parte de pesquisadores, historiadores ou escritores. Não se cogita da subtração de documentos reservados, da invasão de computadores que contenham dados sigilosos, da violação de comunicação privada, nem do ingresso em recintos domiciliares, que representam o asilo inviolável do indivíduo.
O trabalho de pesquisa histórica se realiza no limite da legalidade, pelo resgate de depoimentos esquecidos, por entrevistas com pessoas envolvidas nos fatos em apuração, pela busca lícita de documentos em arquivos públicos ou privados.
Um jurista português me disse certa vez, com aquele raciocínio literal e cortante que é próprio da cultura lusitana: “O anonimato é para os anônimos!” O raciocínio inverso, no entanto, não pode ser levado ao extremo.
É claro que pessoas públicas não têm a sua esfera de privacidade e intimidade reduzida a zero. Como todos nós, elas tomam decisões soberanas sobre as informações de sua vida privada que desejam tornar públicas ou manter sob reserva. Mas, como todos nós, elas não detêm controle absoluto sobre as informações que possam ser legalmente apuradas ou voluntariamente reveladas pelos seus detentores.
A vida de figuras públicas é parte integrante da historiografia social. Contá-la é um direito de todos, independentemente de censura ou licença, como assegura a Constituição. Conhecê-la é uma forma de controle social sobre o poder e a influência que tais figuras exercem sobre todos os cidadãos. O mecanismo da autorização prévia, forma velada de censura privada, é simplesmente inconstitucional.
Fonte: A Voz do Cidadão
Há muito ruído nesta polêmica. Um dos mais correntes é uma interpretação equivocada do Art 20 do Código Civil. Tal Artigo _não_ exige autorização prévia para a publicação de biografias (Dirceu, de Otávio Cabral, é um exemplo). Ele prevê a suspensão da distribuição da obra, a pedido, quando o biografado sentir-se agravado.
Casos de violação da intimidade pessoal – também protegida pela CF88 – são parte da realidade, a morosidade das decisões da justiça é patente. Portanto, nada mais sensato do que a suspensão _imediata_, a pedido do biografado, da circulação da obra. Isso até que a justiça julgue o caso.
Trata-se da proteção do indivíduo, o lado mais fraco, frente a interesses outros (público, empresarial, etc).
Minha opinião.
Liberdade de expressão deveria ter sido melhor legislada desde sua inserção na Convenção dos Direitos Humanos, por ser um direito que gera conflito com outros direitos. Cito como exemplo, o que ocorreu recentemente na França. Marine Le Pen, a controvertida candidata do PN, afirmou publicamente que a Ministra da Justiça, Taubira, negra, parecia um símio, e isto é crime de racismo. A ministra respondeu à ofensa afirmando que Marine fora envenenada além de outro adjetivo que não me lembro. Isto é liberdade de expressão. Só que o PN não aceitou que a Ministra fizesse uso da liberdade de expressão. considerando-a inapta para o cargo por ferir “princípios republicanos”, e vai processá-la.