O excesso de informação é tão ruim quanto a sua escassez. Há, inclusive, um ditado norte-americano que diz que a informação em excesso é tóxica. Já no século XVII, René Descartes, mesmo sem dizer exatamente a mesma coisa, já antevia a sabedoria do ditado, e o primeiro passo para a construção do método cartesiano pressuponha o questionamento de toda a informação até então conhecida pelo filósofo. A moral subjacente ao ditado inglês e ao exemplo de Descartes é que aquilo que de fato tem valor muitas vezes está encoberto por algo que não o tem: a sabedoria, portanto, envolveria mais a capacidade de separação entre o útil e o inútil do que a apreensão enciclopédica de informações sem qualquer tipo de filtragem.
Todo mundo sabe que a reforma tributária no Brasil é urgentemente necessária. Todo mundo sabe que a carga tributária é altíssima, e que o sistema tributário é incrivelmente confuso e burocrático. Apesar de todas essas certezas, ninguém sabe muito bem qual é a cara que a reforma tributária deve ter. Quando se fala de reforma trabalhista, sabemos que é necessária maior liberdade de negociação entre empregador e empregado; sabemos também que a justiça do trabalho deve parar de tratar o empregado como ele fosse inimputável e o empregador como a versão piorada do diabo; reconhecemos também – encerrando com três exemplos – que a contribuição sindical deve ser facultativa, e o fato da cidade de Carapicuíba ter mais sindicatos do que toda a Inglaterra dispensa maiores considerações. No caso da reforma previdenciária, qualquer pessoa bem informada pode dizer que a inversão da pirâmide etária exigirá um maior tempo de contribuição, porque é impossível que um sistema se sustente quando se consome mais do que se arrecada: no mercado financeiro isso é crime, e recebe o nome de pirâmide financeira ou Esquema de Ponzi. Com a questão tributária, por outro lado, os protestos são inclusive maiores, mas as propostas de solução são exíguas.
O cenário da reforma tributária é mais complexo do que aquele da reforma trabalhista ou previdenciária por uma questão simples: nosso sistema tributário possui uma quantidade de informação impossível de se processar de maneira lógica e ordenada. O sistema trabalhista é anacrônico,mas conseguimos pelo menos entender porque ele é ruim. Analogamente, nosso sistema previdenciário é falido e foi mantido até aqui porque os políticos gostam de jogar para a torcida para não perder votos – até que veio a atual crise. De volta à questão tributária, a pergunta persiste: como deve ser feita a reforma? A resposta: inicialmente, ela deve seguir dois princípios básicos. O primeiro é que ela deve funcionar como uma grande faxina; o segundo é que devemos colocar uma focinheira no Leão, mesmo que ele continue gordo por um tempo.
O princípio da faxina exige uma explicação prévia. O problema do nosso sistema tributário pode ser dividido em duas grandes partes: a carga tributária em si e a burocracia tributária. A carga tributária faz referência ao montante que pagamos de tributos; a burocracia, por sua vez, ao tempo que levamos para entender e cumprir as obrigações associadas ao pagamento desses tributos. É a burocracia tributária que a faxina deve atacar. A atual crise dificulta a diminuição pura e simples da carga tributária, mas permite a simplificação do sistema, mesmo que mantidas as alíquotas e incidências. Além disso, a desburocratização, na medida em que diminui o aparato estatal para o recolhimento e fiscalização de tributos, bem como o número de ações judiciais e administrativas relacionados à interpretação das obrigações tributárias, etc., colabora para o enxugamento do governo, e é um dos fatores causais para uma futura diminuição da própria carga tributária. Menor carga tributária pressupõe menos governo, e menos burocracia é sinônimo de menos governo.
A questão de como realizar a faxina começou a ser bem desenhada pelo próprio governo Temer. No início do mês, o governo anunciou que a primeira parte da reforma atacará o PIS, e envolverá a equalização de alíquotas e possibilidade de utilização de créditos por todos os contribuintes. O objetivo é que a reforma ocorra ainda esse mês. A regra geral é que o PIS tenha alíquota de 1,65%, mas vários setores usufruem alíquotas mais baixas por conta de pressões políticas; além disso, nem todos os contribuintes conseguem aproveitar os créditos associados ao tributo, e o regramento de quem pode ou não aproveitar os créditos é discricionário e confuso. Em suma, o que a primeira parte da reforma reconhece já era dito pelo filósofo e economista francês Frédéric Bastiat no século XIX: só se concede um privilégio com a respectiva supressão de um direito; ou seja, grande parte da burocracia do PIS – e o mesmo vale para a Cofins – deriva de privilégios e direitos especiais concedidos a setores por algum motivo considerados especiais, em prejuízo de todos os outros que não tiveram essa sorte. O dirigismo estatal, em outras palavras, criou muito mais problemas do que trouxe soluções.
Em síntese, a faxina deve funcionar como um mea culpa do governo: para todo privilégio concedido, seja em forma de alíquotas diferenciadas, regras de creditamento discricionárias, etc., bem como para cada dever injustamente imposto para a sustentação daqueles privilégios, deverá haver uma simplificação; se no primeiro momento isso não significará uma menor carga tributária, pelo menos os contribuintes não perderão um tempo desnecessário com advogados que parecem praticar mais magia do que direito, ou com o preenchimento de incontáveis guias e formulários que invariavelmente possuirão alguma irregularidade. A faxina, apesar de parecer modesta, significará mais tempo e dinheiro para atividades produtivas que ajudam o país a sair da crise. O que vale para o PIS e para Cofins valerá igualmente para IPI, cujas alíquotas são incontáveis porque tentam abarcar toda a gama de produtos disponíveis no processo de industrialização, e mesmo assim ficam obsoletas diariamente porque a capacidade de inovação na economia é impossível de ser acompanhada pela legislação. Na esfera estadual, e ainda no âmbito das alíquotas, pode-se falar do Icms, cujo regramento atual faz com que as empresas criem uma logística tributária descolada da logística de fato mais eficiente do ponto de vista produtivo, por conta da guerra fiscal entre os estados. Os exemplos são muitos, mas a lógica a mesma: para cada alíquota diferenciada, cada crédito usufruído por determinados setores, há uma oportunidade real de corte. Feitos os cortes, pelo menos entenderemos o que pagar, mesmo que ainda nos sintamos ultrajados pelos valores.
O princípio da focinheira é mais simples: de nada adiantar fazer a grande faxina nas alíquotas, créditos ou obrigações acessórias, se com o outro braço o governo cria ou aumenta impostos, gera novas obrigações acessórias, diferencia alíquotas, etc. O fato de se reconhecer que a diminuição da carga tributária é um passo difícil a ser tomado na atual recessão não significa que o governo deve poder aumentá-la ou de alguma forma criar novas regras que a deixem mais complexa. Se o governo acertou ao dizer que vai começar a reforma tributária atacando a burocracia, ele errou – na voz do Ministro da Fazenda, Henrique Meirelles – ao deixar aberta a porta para o aumento de impostos. O problema do Brasil não é de pouca arrecadação, mas de muito gasto. São as despesas, portanto que devem ser eliminadas; é o governo, então, que deve cortar na própria carne.
A focinheira, portanto, significa que o governo deve resistir ao seu ímpeto criador nessa primeira parte do processo, porque a complexidade do sistema tributário atual impossibilita entendermos qual será a interação de uma nova regra com o que existe atualmente – novas informações somente aumentariam a desordem, como já determina o princípio da entropia na física clássica. Por outro lado, o braço do governo com o esfregão e a vassoura deverá funcionar a todo vapor: afinal, se a informação em excesso é tóxica, a burocracia a ela associada é mortal, como bem sabe qualquer brasileiro que cometa a loucura de ser empreendedor. É claro que pode haver espaço na reforma tributária para supressão ou fusão de tributos, criação de novos regimes tributários, etc. O argumento aqui é que essas medidas somente poderão ser vislumbradas e testadas de modo confiável em um ambiente tributário menos nebuloso. Qualquer grande solução que não passe previamente por uma boa faxina provavelmente não passará de megalomania acadêmica, daquelas que desrespeitam o método cartesiano de todas as formas possíveis.
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