Duas imagens díspares são invocadas por analistas das reformas no Brasil. Na primeira, o Executivo federal aparece como um deus “ex machina” que tudo pode. Um arsenal de instrumentos estão a sua disposição: o poder de nomear e demitir, de liberar emendas orçamentárias, de emitir medidas provisórias ou pedir urgência para tramitação de proposições de seu interesse etc. A lista é longa. Na segunda imagem, o Executivo aparece refém de minorias e de atores com poder de veto – partidos da base de apoio, governadores, interesses empresariais coletivos e de empresas, bancadas setoriais ou até do Judiciário.
Se o Executivo tudo pode, por que não se reformou o sistema tributário nas últimas décadas? Por outro lado, se os obstáculos são atores com poder de veto, quem são eles, e o que fizeram?
No caso da reforma tributária, o argumento do Executivo – demiurgo vem associado à ideia de um governo central poderoso que concentra recursos em detrimento dos demais entes federativos. O governo central aparece nesta imagem como o leviatã descrito pelo Fazendeiro Federal: o antifederalista que – com este pseudônimo instigante – atacou o projeto centralizador de Madison na convenção constitucional americana. Seu argumento era que a concentração de poder e recursos na União levaria à ruína a jovem República. Na sua versão local, este argumento constitui-se em uma das ladainhas mais difundidas do discurso público no país: a denúncia do esvaziamento da federação. Curiosamente, o que este argumento não explica é que se o Executivo tem a capacidade unilateral de concentrar recursos, por que não teria também a capacidade de aprovar reforma do sistema tributário, mesmo em benefício próprio.
“Prima facie”, a trajetória da única proposta de reforma abrangente das últimas duas décadas – a PEC 175/95 apresentada pelo governo de FHC – se encaixa perfeitamente na segunda imagem. Após uma tramitação atribulada que durou 42 meses, a reforma fracassou. Muitos comentaristas enxergaram no episódio a ação de governadores, de interesses setoriais etc. que teriam bombardeado a proposta. Em “Reformas Constitucionais no Brasil: instituições políticas e processo decisório” (Revan, 2002), argumentei que a reforma malograra porque o Executivo desistiu de aprová-la: instruiu os líderes partidários a não colocá-la em votação, e a esvaziar a comissão especial da reforma tributária, negando quorum aos trabalhos. O que teria levado o governo a desistir da reforma?
As lições deste episódio mantêm-se válidas para a análise das vicissitudes da reforma tributária hoje. No livro argumenta que a reforma enfrentava três ordens de questões: sua multidimensionalidade, à aversão ao risco dos decisores econômicos e a credibilidade das promessas do Executivo. A reforma tributária, no Brasil, implica mudanças na tributação do consumo (ICMS), alteração no local de coleta do imposto (origem ou destino), desoneração do ICMS das exportações, entre outras. O problema central era que a distribuição de perdas e ganhos variava segundo a dimensão específica da reforma, impedindo a formação de um consenso em torno de seu conteúdo. O governo enfrentava o dissenso no seio de sua coalizão e no âmbito do próprio Poder Executivo. Seu recuo ocorreu devido à incapacidade de formação de maiorias estáveis em torno de uma proposta multidimensional. E quanto a isso pouco ou nada mudou.
Ainda mais importante foram as mudanças no ambiente externo da economia brasileira na segunda metade da década de 90. Face à crise asiática e russa (1988) e aos custos da defesa do real, o governo realizou uma escolha: preferiu um sistema tributário ineficiente – mas com alto poder arrecadatório – a um sistema sem distorções (sem tributação em cascata, por exemplo) cujo impacto sobre a carga tributária seria incerto. Esse cálculo não constituiu especificidade brasileira: trata-se de singularidade de reformas na área tributária, já identificada na literatura acadêmica. Por aversão ao risco, as reformas tributárias não incrementais só tendem a ocorrer na fase ascendente do ciclo econômico: quando as questões fiscais importam pouco. Neste aspecto, o cenário atual é de não – reforma.
A terceira questão envolve a credibilidade das promessas do Executivo. Isso ocorreu no passado recente em torno das compensação de perdas da desoneração do ICMS das exportações (Lei Kandir). Incapaz de garantir credibilidade as suas promessas intertemporais, o Executivo recua e o processo de barganha trava mesmo quando há ganhos de troca significativos para as partes envolvidas. Isso ocorreu recentemente na negociação em torno da compensação das perdas dos royalties dos Estados produtores.
Apoiado por sólida maioria por que o governo atual não impôs novas regras para a partilha dos royalties do petróleo, como sugere a imagem do Executivo-demiurgo? Embora envolva outras dimensões – como, por exemplo, a questão do local de cobrança do ICMS sobre petróleo, que excepcionalmente é no destino e não na origem, prejudicando Estados produtores – por que a mudança na regra foi aprovada celeremente? A resposta é que trata-se, no fundo, de uma questão unidimensional que deu margem à formação de uma maioria estável dos Estados não produtores. O Executivo recuou, transferindo o ônus da decisão para esta maioria.
A janela de oportunidade para a reforma tributária fechou – o cenário é de incerteza no front econômico e cálculo eleitoral no curto prazo. Só interessa estimular a economia. Assim, a agenda microeconômica tributária amesquinha-se, reduzindo-se a debates rasos sobre um rol “ad hoc” de desonerações fiscais. E IPI zero para automóveis significa menos recursos para o FPM etc. Neste cenário, caberá aos Fazendeiros Federais de turno recitar a ladainha que bem conhecemos.
Fonte: Valor Econômico, 19/03/2013
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