Quando eu era garoto, Mato Grosso e Mato Grosso do Sul eram um Estado só. O Centro-Oeste era uma terra distante, da qual quase só se falava nas aulas de geografia. De lá para cá as coisas ali mudaram muito, como também em Rondônia, no Pará e em Mapitoba, região em torno das divisas de Maranhão, Piauí, Tocantins e Bahia.
A agropecuária se moveu para essas regiões, levando gente e outras atividades. Hoje elas respondem por grande parte das exportações agrícolas e o potencial de expansão ainda é grande, pois há demanda externa e terras disponíveis. O outro lado da moeda, porém, é que essa migração aumentou muito a quantidade de carga transportada e a distância média em que ela trafega no Brasil.
E nosso sistema de transporte não estava pronto para isso. O trem é o modal mais adequado para esse tipo de carga, mas quase toda nossa rede ferroviária foi implantada na primeira metade do século XX, quando a atividade econômica se concentrava em outras regiões. Na ausência de trens, usam-se caminhões, mas com consequências negativas em termos de custos, emissão de CO², acidentes e mortes de trânsito.
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O Banco Mundial publicou um estudo sobre esse insuficiente desenvolvimento do nosso setor ferroviário e a consequente hipertrofia do modal rodoviário no transporte de carga (bit.ly/2J9XOkr). O estudo conclui que o Brasil poderia economizar anualmente 1,4% do PIB com uma realocação de carga para as ferrovias (0,7% do PIB) e uma melhor gestão das rodovias federais (outros 0,7% do PIB). Isso é 2,2 vezes o investimento anual do país no setor de transportes. Não é pouca coisa.
Como o banco também observa, essa oportunidade não passou despercebida aos últimos governos, que buscaram promover investimentos no setor ferroviário de diversas formas, inclusive via projetos tocados pelo setor público, como no caso da Ferrovia de Integração Oeste-Leste, e parcerias com empresas privadas, como a Transnordestina. O resultado foi insatisfatório, conclui o estudo.
Isso se deveu a uma combinação de fatores. Um deles é a complexidade de executar grandes projetos como o de uma ferrovia, seja pelo setor público, seja por empresas sem experiência no setor. Outro foi o governo ter tentado não apenas fomentar investimentos, mas simultaneamente mudar a estrutura regulatória do setor, como ocorreu em 2012-14, quando se tentou desverticalizar as ferrovias, separando a gestão dos trilhos da operação dos trens, como fez a Europa a partir dos anos 1990.
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Em nosso livro “Regulação das Ferrovias” (Editora FGV, 2017), Leonardo Coelho Ribeiro e eu analisamos em detalhe essa estratégia. De forma muito resumida, o problema é que ela eleva os custos e os riscos da operação ferroviária e onera fortemente as contas públicas, pela necessidade de subsídios, prometendo em troca reduções de margens, pela maior competição entre operadores ferroviários, que estão longe de serem uma certeza, a julgar pela experiência internacional.
Enquanto isso acontecia, a Ferrovia Norte-Sul avançou e já virou em parte realidade. O governo planeja outros investimentos ferroviários no Centro-Oeste, como a Ferrogrão (Ferrovia EF-170, ligando Mato Grosso ao Pará) e a Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste). O problema é que a carga transportada nessas ferrovias, para chegar aos portos, precisa conectar-se a outras malhas já existentes. E aí estamos de volta à falta de capacidade e investimentos.
A estratégia do governo para superar esse gargalo é prorrogar antecipadamente as atuais concessões ferroviárias, exigindo como contrapartida investimentos para expandir a capacidade das malhas ferroviárias e reduzir as áreas de conflitos urbanos, ao mesmo tempo em que se redesenha o contrato de concessão, para amarrar esses investimentos e facilitar o direito de outras ferrovias passarem seus trens pelas malhas das atuais concessionárias.
Estudo do Grupo de Economia da Infraestrutura e Soluções Ambientais da FGV sugere que haverá ganhos econômicos substanciais com essa política (bit.ly/2HvnL0T). Esses viriam da redução de custos e da expansão da atividade, fruto da antecipação de investimentos em dez anos. O impacto estimado está na casa das dezenas de bilhões de reais, com a geração de centenas de milhares de empregos. O estudo compara a alternativa da prorrogação com três outras opções, como deixar as concessões vencerem e depois relicitá-las, concluindo que a prorrogação é o melhor caminho.
Essa política seria também o alicerce de um modelo semelhante ao americano, com as diferentes ferrovias competindo entre si ao oferecerem distintas alternativas por onde os usuários podem escoar as suas cargas. Trata-se do modelo mais bem sucedido no mundo no transporte de carga e mais adequado para o Brasil que o europeu.
Ir da estratégia ao plano requer, claro, definir metas, indicadores, cronogramas, valores, sistemas de acompanhamento etc. Mas, no todo, parece um caminho com boa chance de superar os gargalos de transporte e integrar melhor todo esse novo Brasil.
Fonte: “Valor Econômico”, 04/05/2018