O papel-moeda é das invenções mais incompreendidas da vida moderna. Embora suas primeiras aparições sejam muito antigas, apenas em 1933, oficialmente, tem início seu reinado neste planeta. Foi neste ano que, em praticamente todas as nações importantes, a moeda nacional perdeu seus vínculos com os metais preciosos e passou a ser um simples pedaço de papel pintado de aceitação obrigatória fixada em lei.
Era uma revolução, cujas implicações, passados mais de 80 anos, ainda não parecem totalmente esgotadas e esclarecidas. O dinheiro migrou para o terreno das convenções, do imaterial ou do imaginário, sendo comum a designação “moeda fiduciária”, a que depende de confiança.
O fato é que a lei passa a determinar, depois de 1933, que certos pedaços de papel tenham aceitação obrigatória em pagamentos e, com isso, os Estados nacionais passavam a dispor de um poder que se acreditava pertencer apenas aos alquimistas. Não era exatamente transmutar chumbo em ouro, mas algo parecido: dotar meros pedaços de papel pintado de valor imensamente maior que o custo da pintura, e em lugar de encantamentos e processos químicos, bastava a assinatura de um banqueiro ou ministro.
Em 1933 temos, portanto, uma espécie de divórcio litigioso entre a substância e a representação, que passa a ser a coisa em si. No terreno monetário, como na arte de vanguarda, parece haver uma marcha na direção da subjetividade. Segundo um especialista, “ambos são sistemas simbólicos. Seus valores não são inerentes, mas construções sociais: muitos tipos de convenções sociais e instituições (museus e bancos entre elas) fornecem a base para seus significados e conferem a ambos, arte e dinheiro, legitimidade e valor. Sem fé em um pedaço de papel pintado, nenhuma troca haveria de ter lugar. Sem nenhuma noção de convenção artística, nenhuma arte teria existência. Em última instância, ambos são abstrações” (Olav Velthuis, Imaginary Economics: Contemporary Artists and the World of Big Money Roterdam, NAI Publishers, 2005, p. 32).
No seu balancete para maio de 2016, o Banco Central do Brasil tinha uma conta no passivo intitulada “meio circulante” com o saldo de R$ 202 bilhões. É o valor do papel moeda que foi colocado em circulação em troca de bens e serviços, ou de títulos públicos, e que faz parte do passivo não exigível do BC, tal como se fosse uma emissão de ações preferenciais ao portador em pequenas denominações e negociáveis em qualquer recinto. Ou a receita acumulada do “departamento de artes e pinturas” do Banco Central.
Além de confundir os economistas, essa mágica intrigou muitos artistas. Cildo Meireles, no fim dos anos 70, criou cédulas de zero cruzeiro, com estampas muito semelhantes às utilizadas no dinheiro da época, porém sem especificar a quantidade impressa e numerar as cópias. O artista deliberadamente diluiu o valor da obra ao abster-se de limitar a impressão, e assim revelava bastante da natureza da moeda fiduciária.
O fato é que, em toda parte, as nações se organizaram para limitar os poderes dos Estados nacionais para abusar da pintura de papel moeda, e a principal construção institucional empreendida com esse propósito foi a constituição de bancos centrais. Não havia mais que 20 dessas criaturas em 1900, e bem diferentes dos que existem hoje, mais de 170, e a maior parte dos quais considerado “independente” e comprometido em defender o poder de compra dos papéis que emitem.
O Brasil demorou muito para organizar seu banco central, que começou a funcionar em 1965, mas talvez só se possa dizer que tenha sido completamente constituído quando os outros bancos federais e estaduais deixaram de funcionar como bancos centrais depois de 1994, 30 anos depois.
Nosso banco central foi dos mais tardios do mundo, mercê das nossas hesitações em limitar os poderes do Estado para pintar papéis. Não é outra a razão pela qual o País teve nove padrões monetários de 1933 até hoje (mil-réis, cruzeiro, cruzeiro novo, cruzeiro, cruzado, cruzado novo, cruzeiro, cruzeiro real e real) e acumulou uma inflação de 20.759.903.275.651% apenas nos 15 anos anteriores ao Plano Real.
Pois justamente quando estamos amadurecendo nossas instituições para domar as tentações proporcionadas pela Revolução de 1933, por toda parte se cogita abertamente a extinção do papel-moeda. O processo parece ser espontâneo com a proliferação dos mais diversos tipos de moedas digitais, como as milhagens de companhias aéreas, hotéis e lojas, os créditos no interior de redes sociais e de comunidades virtuais temáticas como sites de escambo e jogos eletrônicos, e também de novos métodos de pagamentos que permitem a interconexão dessas redes e moedas.
Na mesma linha, é comum de se perceber uma sutil mudança de linguagem, quando se trata da definição de moeda, pela qual, além da famosa tríade de funções (meio de pagamento, unidade de conta e reserva de valor), e da importância da moeda nacional como instituição, a moeda é referida como tecnologia de pagamento, assim prenunciando um futuro excitante e talvez perigoso, como se percebe nas polêmicas em torno de possibilidades ensejadas pela internet, tecnologias como o blockchain (a base para o bitcoin) e as variantes de novos sistemas de pagamentos e das milhares de fintechs explorando as mais variadas fronteiras de inovação.
Em 1896, ainda próximo do Encilhamento, numa de suas crônicas “econômicas” mais divertidas, Machado de Assis ridicularizou as profecias da ocasião acerca do fim do dinheiro propostas por um vidente: “Não haverá finanças, naturalmente, não haverá tesouro, nem impostos, nem alfândegas secas ou molhadas. Extinguem-se os desfalques (que) andam tão a rodo que a gente de ânimo frouxo já inquire de si mesma se isto de levar dinheiro das gavetas do Estado ou do patrão é verdadeiramente delito ou reivindicação necessária.”
Nada mais atual, não?
E o bruxo acrescenta: “Pelo lado psicológico e poético, perderemos muito com a abolição do dinheiro. Ninguém entenderá, daqui a meio século, o bom conselho de Iago a Rodrigo, quando lhe diz e torna a dizer, três e quatro vezes, que meta o dinheiro na bolsa… Mete dinheiro na bolsa – ou no bolso, diremos hoje, e ainda, vai para diante, firme, confiança na alma, ainda que tenhas feito algum negócio escuro. Não há escuridão quando há fósforos. Mete dinheiro no bolso. Vende-te bem, não compres mal os outros, corrompe e sê corrompido, mas não te esqueças do dinheiro, que é com que se compram os melões. Mete dinheiro no bolso”.
Papel-moeda é apenas tecnologia, tenha-se claro, e pode muito bem desaparecer substituído pelo pré-pago “contactless”, pelo “tag” ou pelas carteiras eletrônicas. Os desfalques são outros quinhentos. Para acabar com eles é preciso prender os corruptos, todos eles.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 26/06/2016.
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