Os brasileiros, mais uma vez, podem sentir a mordida da frustração. Fruto de iniciativa popular, com mais de um milhão de assinaturas de apoio, a Lei da Ficha Limpa era um fio de esperança. A vida, no entanto, mostra o longo caminho que separa o mundo legal da realidade concreta.
Um dia depois de ser pela segunda vez condenado num escândalo de corrupção, o ex-governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda (PR) afirmou que manterá sua candidatura ao governo. Arruda pôs em dúvida decisões judiciais e, mais uma vez, colocou-se como vítima de perseguição política.
Segundo ele, as denúncias de arrecadação e distribuição de propina gravadas em dezenas de vídeos são parte de um golpe articulado por Durval Barbosa, delator da corrupção e ex-secretário de Assuntos Institucionais do seu governo. Num dos vídeos, o próprio Arruda aparece recebendo um pacote de dinheiro de Barbosa. Alegou, então, que o recurso se destinava a comprar panetones para os pobres.
O Tribunal de Justiça do Distrito Federal manteve a condenação de Arruda por ato de improbidade administrativa. Seria, nos termos da Lei de Ficha Limpa, o suficiente para que se tornasse inelegível no pleito deste ano, não fosse um detalhe: o lapso de tempo.
A condenação foi confirmada pelo colegiado somente depois de os políticos terem registrado suas novas candidaturas ao governo do Distrito Federal e ao Legislativo. De acordo com o entendimento corrente nos tribunais, a decisão, para produzir efeitos neste ano, precisaria ter sido proferida antes das inscrições na Justiça Eleitoral.
A favor de Arruda pesou um recurso que suspendeu o andamento da ação. Embora revertido no Supremo Tribunal Federal, o ato forçou a Justiça de Brasília a adiar o julgamento do ex-governador. Firulas processuais são as armas de combate da impunidade. Recursos, prazos, e lapsos temporais, habilmente manipulados por advogados experientes e bem pagos, transformam a Lei da Ficha Limpa numa bela parola.
O momento exige que, além de combater a morosidade processual, a Justiça dê prioridade a processos importantes que envolvam corrupção. Como lembrou recente editorial do jornal “Folha de São Paulo”, será preciso contornar grandes deficiências apresentadas pela Justiça Eleitoral. No início da campanha, os tribunais regionais dedicados ao tema ainda tinham déficit de 38 juízes; na região Sudeste, 38% das vagas não estavam preenchidas, devido sobretudo a atrasos no processo de nomeação de advogados para postos nessas cortes.
Ademais, diante do grande número de instâncias a serem consultadas para verificar se há processos que possam causar inelegibilidade — somente o Ministério Público Federal oficiou a 6 mil órgãos —, parece escasso o prazo de cinco dias para que partidos e procuradorias eleitorais ajuízem ações.
Além disso, alguns setores do Judiciário evidenciam uma notável dificuldade de captar a gravidade da situação brasileira. O que se espera da Justiça não é apenas que seja um zelosa aplicadora da lei. Isso é muito, mas é pouco. O que se espera dos nossos magistrados é uma fina capacidade de discernimento, uma delicada sensibilidade para fazer justiça.
Estou convencido de que a gravíssima epidemia de corrupção está a exigir uma corajosa revisão de rotineiros e cristalizados procedimentos. Ou o Judiciário compreende a gravidade da situação e a força da demanda social ou será atropelado.
A dúvida, estou certo, não é se a reforma modernizadora do Judiciário e das leis será ou deixará de ser feita. Mas se será feita no âmbito do sistema democrático ou sob um regime autoritário. A Venezuela está aí e deveria servir de escarmento. O povo manifesta crescente e perigosa descrença com a capacidade de fazer justiça do Estado.
O formalismo jurídico sem vida pode matar a democracia. O que se quer não é a implementação da justiça à margem da lei e do direito de defesa, e, sim, um Legislativo e um Judiciário que saibam dar resposta à demanda da sociedade contra a recorrente e vergonhosa impunidade.
A Lei da Ficha Limpa não pode morrer na praia.
Fonte: O Estado de S.Paulo, 21/07/2014
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