SÃO PAULO — A economista-chefe do Credit Suisse, Solange Srour, acredita que o pico de inflação que o consumidor tem sentido recentemente não é pontual. Ela afirma que a situação deve se agravar nos próximos meses, à medida que os produtores repassarem as altas do preço de matérias-primas para recompor suas margens de lucro.
Para Solange, o Banco Central deveria iniciar um aumento paulatino da Selic, a taxa básica de juros, e chegar a 4,5% no fim de 2021, patamar que ela considera ainda estimulativo. Apesar da retomada da atividade econômica, ela diz que o crescimento só virá de fato se o país conseguir manter a âncora do teto de gastos e aprovar reformas.
O Brasil se aproxima dos 100% do PIB em dívida enquanto se debate a ampliação de programas sociais no cenário de pandemia. Como a senhora avalia o cenário?
No começo da pandemia e durante os primeiros meses, a política fiscal era o instrumento principal para sustentar a renda dos que foram desalocados de seu trabalho e, ao mesmo tempo, construir uma ponte para que as empresas conseguissem sobreviver. Passada essa pior fase, na medida em que temos melhores tratamentos, aprendemos como controlar melhor o vírus, é cada vez mais importante que os estímulos sejam retirados.
O Brasil, diferentemente de outros países, não tinha espaço fiscal, porque a gente já tinha uma dívida muito elevada antes da pandemia em comparação a nossos pares emergentes e um grande problema, que era controlar o crescimento das despesas obrigatórias.
O Brasil gastou demais durante a pandemia?
Mesmo não tendo espaço fiscal, o Brasil gastou muito mais do que podia, quase 8% do PIB, no combate à Covid-19, distribuídos em medidas de auxílio à renda, ao crédito, a estados e municípios. Ainda postergamos receitas. Vamos aumentar a dívida sobre o PIB em quase 20 pontos percentuais em um ano. Foi uma política efetiva, se olharmos o que aconteceu com as projeções no início da pandemia. A projeção dos organismos internacionais era de que o PIB cairia quase 9%, e agora a gente caminha para uma revisão de que o PIB vai cair algo em torno de -4,5%.
Vivemos um pico de inflação que, segundo analistas, tende a ser pontual. De que maneira isso deve preocupar o BC e a taxa de juros atual?
Eu não acho que esse choque seja tão temporário assim. A alta da inflação recente está ocorrendo principalmente por um choque de oferta. Teve o choque de alimentação por problemas de oferta, teve uma alta importante de commodities no mundo todo, e teve a depreciação do câmbio. Tudo isso não está relacionado à demanda, mas fez com que os preços no varejo subissem, principalmente no atacado.
Tem uma parte da inflação que tem a ver com a demanda que veio com o auxílio emergencial e das medidas de isolamento. Alguns produtos passaram a ser mais demandados, e uma parte importante da população teve um aumento de renda com o benefício. Os IGPs [Índices Gerais de Preços, medidos pela Fundação Getulio Vargas] estão acumulando, em 12 meses, uma média de 24%. Grande parte da inflação é um choque de oferta que não vai ser tão temporário.
Por quê?
Porque a gente vê que foi um choque muito grande. Quase 25% de IGP acumulado, enquanto que o IPCA está por volta de 3,5%. A diferença é muito grande, tem uma parcela desses 25% que ainda vai passar para os preços, mesmo em uma economia em recessão. As empresas precisam recompor uma parte da margem, e os custos estão muito elevados. Uma vez que os estoques vão sendo recompostos, é um outro custo, maior.
Quando veremos essa alta de preços chegar de maneira mais significativa ao consumidor?
Os mais aquecidos, como eletrônicos e eletrodomésticos, que na pandemia tiveram uma demanda elevada, estão repassando e vão repassar mais ainda. Setores como vestuário demoram mais porque não foram um tipo de bem demandado durante a pandemia, mas é um tipo de bem que teve alta no custo da matéria-prima, isso vai repassado ao longo do tempo. O choque de oferta só seria temporário se em algum momento a gente visse uma apreciação mais forte do câmbio, que diminuísse essa pressão acumulada. Não é a nossa visão, não vai haver uma apreciação forte [do real] nos próximos meses.
Temos também a questão de demanda. Não é que esteja superaquecida, mas a gente vê que a economia está voltando ao normal, uma demanda maior por serviços. Mesmo com a saída do auxílio, não vemos uma forte retração da demanda a ponto de ter um impacto deflacionário, porque estamos vendo uma taxa de juros muito estimulativa.
Como a Selic deve se comportar nos próximos meses se a inflação aumentar?
A taxa de juros atual é extremamente acomodatícia, muito frouxa. Foi a taxa que a gente usou para lidar com a pandemia, durante a atividade econômica paralisada. Quando a economia volta, a taxa deveria ir caminhando para um nível menos estimulativo. Ao mesmo tempo, temos essa pressão inflacionária. No nosso cenário, a Selic deve subir a partir de junho 0,5 ponto percentual em cada reunião do Copom e chegar no fim de dezembro a 4,5%. Não é algo que vá retrair a demanda, mas simplesmente estimular menos.
Temos visto movimentos da segunda onda da pandemia, especialmente na Europa. Começamos a ver aumento de internações no Brasil nas grandes capitais, e já se fala sobre a necessidade de prorrogar o auxílio em caso de uma segunda onda. Como vê esse risco?
Vemos um aumento significativo de casos na Europa e nos Estados Unidos, ambas regiões sofrendo um impacto do inverno. É muito diferente do que está acontecendo no Brasil, que nunca desacelerou casos fortemente. Em segundo lugar, não vemos o crescimento [de novos casos] na mesma velocidade que a Europa. A volta de casos no Brasil e em outros países na América Latina deve estar mais ligada à volta das atividades. Estamos longe de uma segunda onda tão grave quanto a do Hemisfério Norte. O auxílio fez sentido quando houve isolamento social e lockdown em vários lugares. Se não há lockdown, não vejo a necessidade de se fazer um auxílio.
Temos duas reformas em tramitação no Congresso: administrativa e tributária. Qual deveria ser priorizada? Qual é a possível?
A PEC do Teto pressupunha que a gente fosse caminhar com reformas que alterassem a estrutura dos nossos gastos obrigatórios. Era necessário ter feito a reforma da Previdência e a administrativa. Não dá para limitar as despesas quando elas aumentam devido a regras que estão fora do controle. A segunda maior despesa obrigatória do orçamento é a folha salarial do governo. O que precisa mexer no curto prazo é isso. Precisamos de uma reforma administrativa, ampla que traga benefícios já nos próximos anos.
Fonte: “O Globo”, 24/11/2020
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