Dizia-se dos protestos de junho de 2013 que expressavam nossa “crise de representatividade”. A população não se reconhecia — e ainda não se reconhece — naqueles que ela própria elegera. Seguiram-se a reeleição e o impeachment de Dilma Rousseff, o consequente fim da hegemonia petista, a devassa da Operação Lava Jato nos maiores partidos políticos e, como corolário, as eleições mais insondáveis, conturbadas e angustiantes em nossa história recente — com a prisão de um ex-presidente que esbanja popularidade, o atentado contra o líder nas pesquisas e o desnorteamento de imprensa e academia diante de nosso destino.
A percepção de que a classe política se afastou do eleitorado não é exclusiva do Brasil. Está ligada à crise dos partidos de extração social-democrata ou liberal que governavam havia décadas os países ricos. Mas, entre nós, ela assumiu feição própria, pois não se trata exatamente de novidade. A democracia representativa, ao contrário, é que sempre penou para vingar por aqui, num país marcado pelo coronelismo e onde, até hoje, o mesmo eleitor que brada “eles não me representam” não sabe em quem votará para o Legislativo nem sequer se lembra de quem escolheu na última eleição.
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As raízes desse paradoxo são o tema do maior clássico da ciência política brasileira, Coronelismo, enxada e voto, tese de Victor Nunes Leal defendida há exatos 70 anos. “O livro nos faz pensar nossa realidade e o governo representativo”, diz o cientista político Fernando Limongi. Nunes Leal desenvolve uma argumentação cristalina, baseada em evidências históricas, sobre como a representação política deficiente no Brasil, da Colônia à Era Vargas, resultou da falta de autonomia dos municípios para eleger seus líderes e controlar seus próprios recursos. O coronelismo, no entender dele, refletia um compromisso, uma troca de favores entre União, estados e municípios, espécie de pecado original na organização política brasileira.
O líder municipal recebia do estadual poder de polícia e comando absoluto sobre seu território, desde que, na eleição, entregasse seus votos de cabresto ao candidato do governo.
Em vez de o eleitor votar em seus governantes, estes é que escolhiam seus votantes.
“O que explica a inversão do governo representativo é a falta de autonomia municipal, é a dependência do município em relação ao estado e o fato de o poder estadual conferir carta branca ao poder local”, diz Limongi. A consequência era o sufocamento da oposição. “O que distingue regimes representativos sem competição dos com competição, as eleições não democráticas das democráticas, é se a oposição participa ou não.”
Nunes Leal constatou que o coronelismo derivava do alto custo das eleições. “Quem fala dos custos das eleições no Brasil de hoje não se dá conta de que elas são sempre caríssimas e, relativamente, eram muito mais caras no passado”, diz Limongi. O barateamento das campanhas por meio do rádio e da TV permitiu que o sistema eleitoral brasileiro abrisse espaço à competição e, com a redemocratização, se tornasse mais justo. Mas a maior ameaça à representatividade, o voto determinado de cima para baixo, não desapareceu no território vastíssimo, de distritos eleitorais imensos, em que persistem práticas clientelistas, e as lideranças de municípios ou entidades locais dependem do poder central. Nunes Leal atribuía tal relação de dependência à “estrutura agrária do país”. Mas ela sobreviveu ao avanço econômico.
A maior crítica dele se voltava contra o autoritarismo de quem acreditava ser preciso limitar o poder municipal para podar as garras dos coronéis locais e, só quando o povo tivesse “condições” de votar, abrir espaço à representação plena. Ao contrário, diz Nunes Leal, a manutenção da dependência consagra as oligarquias estaduais, até hoje soberanas na política regional. Na definição de Limongi, o livro é um “libelo municipalista”. A valer a conclusão da obra, não há como ampliar a representatividade da democracia sem resgatar o elo entre cidadão e política local.
Fonte: “Época”, 14/09/2018