Na Grécia da antiguidade, era o sentimento de extrema autoconfiança que acometia os heróis após a realização de seus feitos. Não raramente, eles passavam a se sentir invencíveis, chegando até a desafiar as próprias divindades que lhes haviam concedido a glória. Os deuses gregos não admitiam tal afronta. Havia um senso da “exata medida de todas as coisas”, e não era lícito ao homem desafiar essa ordem. A alguns os deuses davam mais, a outros, menos. E cada um deveria contentar-se com aquilo que lhe era concedido.
Júlio César, alguns séculos mais tarde, introduziu nesse conceito a questão do mérito. Para ele não havia limites à ousadia humana. Os deuses sempre abençoariam os seus pupilos, desde que estes se mostrassem merecedores de tal graça. Já na época de César, como contrabalanço ao excesso de soberba, os romanos instituíram um ritual cuja finalidade era trazer os seus generais de volta à realidade. Após seus triunfos, nos campos de batalha, eles deixavam suas tropas no Campo de Marte e seguiam, sob ovação geral, até as escadarias do Senado. Em sua companhia – na biga – seguia um sacerdote constantemente a repetir: “Memento mori” (lembra-te de que és mortal).
Avancemos dois milênios na História e encontraremos nas palavras de Napoleão Bonaparte uma visão mais fatalista desse desígnio: “Enquanto eu for útil aos deuses, não haverá força no mundo capaz de me vencer. Mas bastará que eu deixe de sê-lo que até mesmo uma mosca me derrubará”.
Napoleão fora acometido pela húbris e terminou melancolicamente os seus dias, isolado na Ilha de Santa Helena. Júlio César não teria melhor sorte: foi brutalmente esfaqueado às portas do Senado romano. Seus assassinos receavam que ele viesse a tomar para si o poder absoluto e tornar-se rei. O temor era tão grande que até mesmo discípulos seus participaram da carnificina.
A húbris, por si só, já era um instrumento de loucura. Quem sofria os seus efeitos era tomado por uma sede insaciável de glória e reconhecimento. Como bem lembrou Bertrand Russell: Napoleão invejava Carlos Magno. Carlos Magno, por sua vez, invejava Júlio César. Este invejava Alexandre, que invejava Hércules, que nunca existiu. Alertavam os persas de que nem todo o ouro, nem toda a glória, nem todo o poder do mundo são suficientes para saciar a cobiça de um único homem. Há que se compreender e se conformar com isso.
Pois bem! Estamos aqui a nos deleitar com história e filosofia, e não nos apercebemos de que há, entre nós, um homem que, enlouquecido pela húbris, pretende implodir as nossas instituições. Ele já investiu contra as prerrogativas do Poder Judiciário, incentiva movimentos contra a liberdade de expressão, trata o Poder Legislativo com desdém e vem dando sinais de que pretende novamente se eleger presidente da República. Ele atende pelo nome de Lula.
Ninguém entende as razões de sua implicância com a ordem democrática, uma vez que foi a própria democracia que permitiu que ele alçasse voos tão altos. Ele foi de torneiro mecânico a presidente da República graças a ela. Mérito ele demonstrou, sem dúvida. Mas isso não faz dele alguém acima das instituições. Não foi fácil construir a nossa liberdade. Ninguém tem o direito de atentar contra ela.
Há quem veja em Lula alguns traços de caudilhismo. E não é difícil imaginá-lo trajando sombreiro e poncho a arengar as massas. Nos oito anos em que ocupou o poder, ele deu repetidas demonstrações de sua fixação em líderes carismáticos. Incensou os irmãos Castro, flertou com Evo Morales, genuflexou-se perante Hugo Chávez e persignou-se à frente de inúmeros ditadores africanos. Isso tudo sem contar a vergonhosa atitude de apoiar o ditador do Irã e o episódio de Honduras, em que o Brasil, por orientação de Chávez, custeou sozinho a sobrevida de Manuel Zelaya.
Com exceção deste último, todos os demais “caudillos” permanecem no poder, o que faz Lula se perguntar por que só ele se dispôs a entregar a faixa presidencial e voltar para São Bernardo.
Por trás de Lula existe o PT – o Partido dos Trabalhadores -, e talvez seja esse o seu “calcanhar de Aquiles”.
O substrato ideológico do partido é de origem marxista, e aos seguidores dessa seita não basta alcançar o poder e exercê-lo com excelência. É preciso, também, eliminar os adversários, estabelecer uma verdade única e emudecer aqueles que dela discordam. O conflito entre essa visão de mundo e a democracia é, portanto, inevitável.
Para o bem ou para o mal, é com essa qualidade de mão de obra que Lula conta. E, de quando em quando, é preciso tratá-la com carinho.
Criar uma elite ideologicamente confiável e minimamente capacitada é o sonho de consumo de qualquer ditador. Mussolini pretendeu criá-la permitindo o acesso ao nível superior de ensino unicamente aos jovens identificados com a sua causa.
Aqui, nestas plagas, Getúlio Vargas e o movimento militar de tudo fizeram para que os postos de confiança na administração pública fossem ocupados exclusivamente pelos seus simpatizantes.
O problema de Lula é que a húbris já o está a contagiar. E aqueles acometidos por ela costumam deixar de lado prudência, passam a subestimar os seus adversários e perder a noção do perigo.
O recente episódio de abordagem imprópria e insinuação de chantagem de um ministro do Supremo Tribunal Federal é emblemático. Lula não bebe mais somente aquele líquido refugado pelos pássaros. Ele agora ingere também a húbris. E a dependência, aí, é muito pior.
Conselho: não se atreva a mexer com o jacaré, antes de ter atravessado o rio.
Fonte: O Estado de S. Paulo, 15/06/2012
Ótimo artigo, Mellão!Up to date!