“É agora ou nunca: está em jogo a própria causa do multilateralismo”, alertou Roberto Azevêdo, o diretor-geral da Organização Mundial de Comércio (OMC), na abertura da conferência ministerial de Bali. Dias depois, consumou-se o desastre. Com o colapso da Rodada Doha, deflagrada há 12 anos, o multilateralismo globalista cede lugar aos acordos regionais, enquanto a OMC é reduzida à condição de ente vestigial: um tribunal de contenciosos comerciais. O fracasso atinge em cheio o Brasil, evidenciando uma sequência de erros de política externa causados pela subordinação do interesse nacional ao imperativo da ideologia.
Não faltaram alertas. A Rodada Doha experimentou uma implosão inicial na conferência de Cancún, em 2003, e sucessivas desilusões, entre 2006 e 2008. Ao longo do percurso, floresceram como alternativa os tratados bilaterais de livre comércio (TLCs), mas o Brasil preferiu ignorá-los. México, Chile, Colômbia e Peru engajaram-se na negociação de TLCs com os EUA e a União Europeia (UE) -e formaram a Aliança do Pacífico. O Mercosul, pelo contrário, revelou escasso interesse em concluir um acordo com a UE, cujos ensaios surgiram antes ainda do início da Rodada Doha. A opção pelo multilateralismo, pretexto permanente do Itamaraty, disfarçou a transformação regressiva sofrida pelo Mercosul.
“O Mercosul, ou o reformamos ou também se acabará”, conclamou Hugo Chávez em 2006, antes de concluir: “Vamos enterrar nossos mortos, irmãos!”. O “novo Mercosul”, um diretório político tripartite, emergiu com o ingresso da Venezuela. A reinvenção implicou o abandono do regionalismo aberto do Mercosul original e a absorção paulatina dos cacos da Aliança Bolivariana das Américas. Subordinado aos dogmas do chavismo e do kirchnerismo, o bloco do Cone Sul tornou-se um obstáculo intransponível para a negociação de acordos comerciais. Certeiro, o presidente uruguaio José Mujica acusou a “política insular” da Argentina de estar “arruinando o Mercosul”.
Faz mais de três anos que Vera Thorstensen avisou, quando deixava a missão brasileira em Genebra: “a dinâmica atual do comércio internacional não está mais na OMC e sim nos acordos regionais”. De lá para cá, os EUA engataram as negociações dos mega-acordos da Parceria Transpacífica (TPP), com as grandes economias asiáticas (exceto a China), e da Parceria Transatlântica (TTIP), com a UE. Se concluídos, os dois acordos transcontinentais deslocarão para o seu interior o processo de formulação de normas de comércio e investimentos, completando o esvaziamento da OMC. Os países da Aliança do Pacífico ocuparam lugares no trem dos mega-acordos; o Brasil ficou na plataforma, segurando um guarda-chuva para a Argentina e a Venezuela.
“Se a dinâmica é fazer acordos regionais, o Brasil deveria estar negociando não só no eixo Sul-Sul, mas no eixo Norte-Sul”, sugeriu Thorstensen. O problema é que, sob Lula e Dilma, a expressão “eixo Norte-Sul” converteu-se numa abominação doutrinária para a política externa brasileira. Agora, assustado com as consequências da obstinação ideológica, o Itamaraty ajoelha-se diante de Cristina Kirchner implorando por um consenso improvável que não feche todas as portas do Mercosul ao acordo com a UE.
O mito da Ilha-Brasil ganhou corpo no século 19. Invocando as aventuras dos bandeirantes, o Império do Brasil sustentou a ideia de que o território nacional constitui uma “ilha” na América do Sul, delimitada por fronteiras naturais que estariam apoiadas no traçado das redes hidrográficas. A noção da Ilha-Continente nutriu o nacionalismo imperial, forneceu um alicerce mítico para a manutenção da unidade territorial e ofereceu argumentos utilizados nas negociações de limites com os países vizinhos. Hoje, ressurge na forma de uma muralha anacrônica que nos isola dos fluxos da globalização.
Fonte: Folha de S.Paulo
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