Eu disse e repito: livros são tão vivos quanto as pessoas. Gritam, soluçam, silenciam, pregam, ensinam, sugerem, inspiram e podem ser usados, descartados e esquecidos.
Uma vez, quando tomei parte numa homenagem ao professor Richard Moneygrand, em New Caledonia, Estados Unidos, depois das formalidades fui à sua casa para fechar a noite. Moneygrand estava muito feliz. Havia bebido bem, mas não perdera a compostura, pois nele o mero álcool apenas acentuava o seu desprendido amor pelos outros, inclusive pelos seus mais ferozes inimigos: o grupo contrário ao estudo do Brasil como algo distinto da “américa-latina” na sua universidade. Na ocasião desse último trago, ele comentou comigo que havia tido uma conversa extraordinária com uma mulher e como essa criatura lhe fora simpática, amável e até mesmo atraente, apesar da idade. “Tive com ela — disse-me com um ar que transpirava a felicidade da ocasião — um encontro notável. Ela sabia muito da minha obra, conhecia alguns detalhes das minhas viagens ao Brasil e, mais que tudo, tinha simpatia pela minhas opiniões. Mas veja como são as coisas… Eu não me lembro do seu nome — como a memória é imprevista.”
“Dick — repliquei — aquele senhora simpática era Lana, sua terceira esposa, lembra?”
Meu velho mentor arregalou os olhos, soltou uma das suas vastas gargalhadas e após dar um beijinho na sua quarta ou quinta mulher (agora eu é que não lembro), a Susan Smith, já substituída por outras, repetiu o seu velho refrão: “A cada nova pesquisa e livro — uma esposa nova ou uma nova esposa!”, disse ele piscando um olho muito azul em direção à minha cara de pateta sempre paralisado pela culpa.
Voltemos, porém, aos livros. Eles são esquecidos, mas podem ser sempre lembrados, pois mudam as nossas vidas.
Não me esqueço da minha primeira leitura de “Dom Casmurro”, realizada numa aldeia apinajé pelos idos dos anos 60. Peguei o livro certo de que ele ia me conduzir ao sono que dribla a solidão, mas ocorreu o justo oposto. Fui enredado pelo texto até o amanhecer porque um lado meu queria ver Capitu castigada; enquanto um outro, recordava um beijo enviesado, exatamente igual ao de Bentinho, e isso me fazia duvidar da infâmia da heroína, obrigando-me a desconfiar de uma exposição feita por um sujeito tão ciumento quanto eu.
Os leitores de Isaiah Berlin sabem como ele criticou modelos e verdades absolutas desde que, ainda criança, passou pelo trauma de testemunhar em fevereiro de 1917, um grupo arrastando um policial czarista numa rua de Petrogrado. Sua trajetória intelectual, contada num memorável ensaio autobiográfico na “The New York Review of Books” (de maio de 1998), é uma confissão de como os livros dos grandes pensadores iluministas, produtores de certezas sobre as famosas leis da história e da sociedade — parte de uma philosophia perennis —, foram substituídos pelo encontro com o “Ciência nova”, de Giambattista Vico, e com os ensaios sobre a linguagem e a história de Johann Gottfried von Herder. Vico tornou Berlin consciente dos valores que fazem com que as ações tenham sentido para quem as faz. Para ele, o verdadeiro conhecimento não é saber como as coisas são, mas como as coisas são o que são. Um lugar somente alcançado quando se penetra nos motivos, temores, esperanças e ambições dos outros. Podemos fazer isso porque, como eles, somos humanos e também movidos por contradições, dúvidas e limites. Nossos imprevistos ajudam a compreender imprevistos.
Com Herder, Berlin percebeu que culturas diferentes davam respostas diferentes a problemas igualmente diferentes. Ele assim aprendeu a duvidar de verdades eternas e inquestionáveis, supostamente corretas para todos os homens em todo tempo e lugar.
Esses fundadores da antropologia cultural, fizeram com que Isaiah Berlin duvidasse das ideias que se apresentavam como verdades objetivas escritas no céu e prontas para serem copiadas. A leitura de Vico e Herder revelou como as verdades eram criadas pelos homens. Valores não são encontrados, mas fabricados. Quando um poeta faz uma poesia em português, ele não apenas usa a língua: ele a reinventa. Um membro de uma sociedade é uma expressão e, ao mesmo tempo, um fazedor da sua sociedade. A singularidade conta tanto ou mais do que o geral e o universal.
Lamento não não ter espaço para elaborar essas desassossegadas ideias. Mas elas mostram como os livros, como as pessoas, falam, ensinam, influenciam e dizem coisas de modo tão concreto quanto um amigo ou um inimigo.
Na casa de Miriam e Eduardo Raposo, onde fui celebrar os elos de simpatia que cimentam o departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio, ouvi do filho do casal, o Ian, a seguinte história:
— Professor Roberto, olhe o que me aconteceu. Estava na praia e dela brotou um hippie que vendia artesanato. Ele havia abandonado sua casa e família para viver na rua.
Curioso, perguntei o que o havia feito tomar esse caminho. A resposta lhe interessa, professor. Ele me disse o seguinte: “Eu decidi largar tudo depois de ter lido um dos livros do Roberto DaMatta.”
— Qual? — perguntei, entre o aflito e o curioso.
— Não me lembro. Talvez “A casa e a rua” ou “Carnavais, malandros e heróis”…
— É, pode ser… — concluí, assustado, com o poder dos livros.
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