Quando tudo parece já ser conhecido, causa surpresa, se não espanto, observar que ministros e titulares de órgãos do Estado agem à revelia de si mesmos e de decisões maiores do Supremo Tribunal Federal (STF). Refiro-me, em particular, à edição e à suspensão da Portaria 303 da Advocacia-Geral da União (AGU), normatizando as condicionantes do STF relativas ao julgamento do caso da Raposa-Serra do Sol.
Na edição dessa portaria, a AGU nada mais fez do que regulamentar um acórdão do Supremo, seguindo suas determinações. Cumpriu um preceito constitucional. Em nota n.º 24/2012/
DENOR/CGU/AGU, ao responder à solicitação da Funai pela revogação dessa Portaria 303, constam, no seu arrazoado, importantes considerações.
O texto da AGU, no inciso 3: “Seu texto segue rigorosamente o que foi determinado pelo STF no julgamento do caso Raposa-Serra do Sol, em 2009, pois é mera reprodução de sua decisão na Petição 3.388/RR”. Trata-se de decisão da mais Alta Corte do País sendo aplicada. É o Estado de Direito em funcionamento.
No inciso 5, frisa que seu principal objetivo, “ao publicar essa Portaria, é a promoção da estabilidade das relações jurídicas”. Observe-se que a segurança jurídica é o objetivo maior. Logo, há um marco a partir do qual os conflitos podem ser equacionados, no estrito cumprimento da lei.
Não obstante essas considerações, a AGU conclui pela suspensão da portaria, considerada tão necessária. A contradição é flagrante. Ela deixa de seguir o que foi fixado pelo STF, não mais se preocupa com a estabilidade jurídica apregoada, dissemina a insegurança jurídica e aumenta os conflitos existentes nessa área. O que era um marco constitucional deixa abruptamente de o ser.
A questão é a seguinte: o que levou a AGU a agir contra si mesma, na verdade, contra o próprio governo? Convém salientar que a suspensão dessa portaria atinge não somente agricultores (familiares, pequenos e médios) e o agronegócio, mas a construção de hidrelétricas, hidrovias e estradas, a mineração e, de modo mais geral, a soberania nacional e a presença das Forças Armadas, em particular o Exército, em todo o território nacional.
Para responder àquela questão é necessário remontar ao Ofício n.º 260/GAB/PRES-FUNAI, assinado por sua presidente, Marta Maria do Amaral Azevedo, e dirigido ao advogado-geral da União, ministro Luís Inácio Adams. Em sua consideração n.º 1 consta: “Em atenção às reivindicações apresentadas pelos povos indígenas e organizações da sociedade civil e considerando os compromissos e esforços do Estado brasileiro para a regulamentação e implementação do direito de consulta dos povos indígenas, previsto na Convenção 169 da OIT, solicito a suspensão temporária dos efeitos da Portaria AGU n.º 303/2012, que foi publicada no DOU de 17/07/2012”.
Posteriormente, em declarações publicadas em jornais, é advogada a suspensão definitiva dessa mesma portaria.
Observe-se que uma decisão do Supremo, seguida pela AGU, deveria ser submetida à apreciação e aprovação dos povos indígenas e de organizações da sociedade civil. O STF não seria instância máxima do País na interpretação constitucional das leis, mas deveria ser referendada por outras instâncias. O Supremo deixaria de ser supremo!
Note-se o eufemismo “organizações da sociedade civil” para designar, na verdade, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), órgão da Igreja Católica, o Instituto Socioambiental e outras ONGs indigenistas, nacionais e internacionais, além dos ditos movimentos sociais. Eles se tornariam, então, a instância máxima para a decisão dessas questões. A insensatez é total.
O ofício ainda recorre à Convenção 169 da OIT, como se ela estivesse acima da Constituição nacional e da decisão do STF. De nova conta, nossa mais alta Corte aparece como instância subordinada. Ocorre aqui uma transferência de soberania.
Em sua consideração n.º 2 consta que “tal medida (de suspensão) se justifica em razão da repercussão negativa que a edição da Portaria causou em âmbito nacional e internacional, fato atestado, inclusive, pela Secretaria-Geral da Presidência da República”. Ora, ora! Uma portaria da AGU normatizando uma decisão do Supremo deveria estar condicionada às suas repercussões em ONGs nacionais e estrangeiras, graças às suas influências em certos jornais, revistas e meios de comunicação no País e em escala global. A mensagem é a seguinte: Brasil, não exerça sua soberania e siga essas ONGs e os movimentos sociais!
Mais estarrecedor ainda é o fato de o ministro da Justiça, José Eduardo Cardozo, assumir para si essa posição de um órgão de sua pasta, a Funai. Em seu aviso n.º 1744/2012/MJ, de 14/9/2012, endereçado ao advogado-geral da União, é dito ter ele recebido no ministério a presidente da Funai, o ministro substituto da AGU e vários representantes de etnias indígenas, que “solicitaram a revogação da Portaria n.º 303”. Ou seja, órgãos estatais e representantes de algumas etnias apregoam a revogação da portaria, o que significa dizer que a decisão do STF não deve ser normatizada, logo, seguida.
Que o ministro receba grupos com demandas insensatas, pode perfeitamente fazer parte do seu trabalho. Que ele assuma essa insensatez, é algo totalmente diferente. Assim, escreve após ter ouvido as lideranças: “Declarei de próprio punho” que encaminharia à AGU a proposta de “criação de um Grupo de Trabalho composto pelo Ministério da Justiça, AGU, Funai e representantes dos Povos Indígenas com o objetivo de discutir as condicionantes estabelecidas na Portaria n.º 303/2012 e outras formas de viabilização de processos de demarcação de Terras Indígenas, na conformidade com o estabelecido na Constituição Federal”.
Como assim? Agir em conformidade com o estabelecido na Constituição submetendo à consulta uma decisão do Supremo, como se essa Corte não tivesse seguido a nossa Lei Maior? A instância máxima do País tornou-se mínima?
Fonte: O Estado de S. Paulo, 05/11/2012
Faz tempo que a Constituição Nacional foi jogada na lata de lixo. O que é muito grave, pois além de criar a insegurança jurídica, abre precedente para todo tipo de ação em desrespeito à Justiça e ao Direito.