Ao lado dos juízes da Operação Lava Jato – que poderia, por seus aspectos positivos, ser chamada de Operação Lava Democracia –, o eleitor terá a oportunidade de fazer, em sucessivas eleições, a substituição paulatina de alguns integrantes dos Poderes Legislativo e Executivo que desonram os mandatos. Mas é preciso considerar que muitas das causas que levaram ao rebaixamento institucional dos Poderes Executivo e Legislativo, incluída a conversão do presidencialismo de coalização em presidencialismo de corrupção, também abriram as portas do governo sem limites, no sistema de Justiça, para uma nova elite, talvez mais resistente aos ventos da mudança.
Das boas intenções do Banco Mundial, e seu diagnóstico correto sobre a necessária modernização do sistema de Justiça, a reforma do Judiciário de 2004 só aproveitou o ciclo político para reforçar o patrimonialismo, a política de compadrio, o gigantismo estatal e outros velhos inimigos do progresso. Duas estratégias consolidaram o modelo de mandonismo judiciário.
A primeira foi a criação de uma máquina burocrática tentacular, para manter a magistratura séria e trabalhadora sob controle e intimidação difusa. A segunda, a adoção, nos julgamentos, de uma “hermenêutica dos novos tempos”.
Para sustentar a maior e mais cara estrutura de fiscalização e controle judiciário do mundo, com quatro Conselhos de Justiça, a reforma do Judiciário de 2004 escolheu o indefeso cidadão. A imensa burocracia, vulnerável à sindicalização da magistratura, foi combinada com a adoção da principiologia jurídica, sistema de interpretação que, nos julgamentos, subordina o valor coletivo e democrático da lei ao sentimento autocrático do ativismo de toga.
A substituição da lei pelo cesarismo judiciário torna descartável a vontade de milhões de cidadãos. Basta insultar a fé, as crenças e os valores da maioria dos brasileiros, como fonte de estatuto normativo reacionário e atrasado, e aplicar o princípio iluminado na alma do despotismo de toga.
A combinação explosiva do maior e mais caro sistema de fiscalização e controle judiciário do mundo, com o direito fundamentalista da militância de toga, sujeitou o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) à potencial condição de superministério judiciário, sem controle social.
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Principal responsável pela falta de cumprimento do teto constitucional de vencimentos, com prejuízo de bilhões nas contas públicas, o CNJ foi instituído num modelo que o torna suscetível à tentação autoritária de formulador de políticas públicas, interventor estatal em setores econômicos, sem nenhuma legitimidade constitucional.
O direito à saúde é exemplar. Há alguns anos os julgadores dos “novos tempos” começaram a decidir a questão com base em princípios vagos, em sentenças de puro messianismo, sem nenhuma referência às finitas fontes econômicas de financiamento. Em pouco tempo, disseminou-se no sistema de Justiça uma espécie de socialismo da distribuição de medicamentos, sem que a sociedade brasileira jamais tenha deliberado sobre tão brusca alteração política.
Quando a principiologia jurídica elevou a conta à casa dos bilhões de reais, comprometendo parte significativa da gestão da saúde em vários níveis de governo, o CNJ resolveu assumir o papel de formulador de política pública no setor.
Mas essa fórmula de governança nunca esteve, não está, nem deverá figurar na Constituição federal. Formuladores de políticas públicas nas democracias são os representantes eleitos pelo povo. O exercício desse alto poder dirigente está submetido às discussões transparentes e plurais dos Poderes Legislativo e Executivo, com pautas bem definidas, nos três níveis de governo.
Não obstante, “após realizar dois encontros nacionais, o Fórum da Saúde ampliou sua área de atuação para incluir a saúde suplementar e as ações resultantes das relações de consumo”, informa o site do CNJ.
Qual a legitimidade constitucional desse Fórum de Saúde do CNJ, cujos integrantes são escolhidos por critérios que nunca foram discutidos pelo povo ou por seus representantes legítimos? Qual o limite do mandato que não está na Constituição? A que tipo de atuação, constrangimentos normativos ou regulações podem ser submetidos o setor privado e os representantes do povo – ministro, secretários estaduais e municipais da Saúde –, os únicos gestores legítimos do sistema de saúde?
Essa intervenção estatal judiciária é ainda mais inquietante se lembrarmos que no mesmo período de depredação institucional não apenas os Poderes Legislativo e Executivo foram fragilizados, mas o dogma número um de proteção do investidor – a separação entre o patrimônio da empresa e o do empresário – foi sistematicamente vilipendiado pelos militantes de toga.
Nos tempos do capitalismo de compadrio, os poucos campeões nacionais sustentados pelo dinheiro público quase não foram incomodados pelo sistema de Justiça, com a exceção da Operação Lava Jato. Mas para alimentar o caixa direcionado a esses poucos, milhares de empresários genuínos, confrontados por toda ordem de dificuldades, tiveram o patrimônio pessoal liquidado, por força de regras jurisprudenciais exóticas, manifestamente contrárias à Constituição.
É certo que a solução definitiva para todos os problemas criados pela reforma do Judiciário de 2004 só virá com a realização de uma verdadeira mudança no sistema de Justiça. No sentido liberal da democracia, da livre-iniciativa e do valor social do trabalho.
Mas por ora é necessário que a magistratura séria e trabalhadora, os novos representantes eleitos pelo povo, nos Poderes Executivo e Legislativo, e o empresariado recusem qualquer arranjo inconstitucional, extravagante, derivado da combinação de uma burocracia interventiva custosa com a autoritária hermenêutica da principiologia jurídica.
Fonte: “O Estado de S. Paulo”, 10/01/2018