O senador republicano John McCain preparou seus funerais meses atrás. Convidou o democrata Barack Obama e o republicano George W. Bush para falarem na cerimônia principal, na Catedral Nacional de Washington — e fez chegar à Casa Branca o recado de que Trump não seria bem-vindo. McCain não era um santo, longe disso, e cometeu erros trágicos, entre eles o apoio entusiasmado à invasão do Iraque, em 2003. Seu cisma com Trump, porém, divide os EUA em dois — não dois partidos, mas duas nações.
A nação de Trump é ultranacionalista; a de McCain, internacionalista. A de Trump é xenófoba; a de McCain celebra a integração dos imigrantes. Trump é um arauto do nativismo: sua nação repousa no mito do sangue. McCain foi um mensageiro do patriotismo cívico: sua nação repousa sobre ideais compartilhados. A herança moral de McCain transborda as fronteiras dos EUA: na hora em que quase todos silenciaram, ele ergueu sua voz contra a tortura. E fez a diferença.
“Meus captores, de modo geral, trataram os prisioneiros com mais humanidade do que os soldados americanos os trataram em Abu Ghraib”, escreveu o senador em The Restless Wave, seu livro de adeus. Os captores de McCain não foram suaves: prisioneiro de guerra no célebre “Hanoi Hilton”, no Vietnã, entre 1967 e 1973, foi torturado múltiplas vezes. Da experiência, extraiu dois argumentos de naturezas diferentes contra a tortura. No plano pragmático, ensinou que a tortura é ineficaz para objetivos de inteligência. No plano dos princípios, qualificou-a como mancha indelével no tecido das nações civilizadas.
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McCain nocauteou os defensores da utilidade da tortura ao provar que a pista que permitiu a descoberta do esconderijo de Osama Bin Laden não foi obtida a partir das confissões do jihadista Khalid Sheikh Mohammed, mas de outro prisioneiro, não submetido a maus tratos. Sheikh Mohammed, sujeito a 183 vezes a afogamentos simulados, não tinha a peça crucial de informação. Sob tortura, explicou McCain, com conhecimento de causa, o cativo fala tudo, misturando informações verídicas com invenções destinadas a interromper o suplício. No fim, torna-se impossível separar uma coisa da outra.
Mas McCain tinha escassa paciência para o debate “pragmático”. Quando, em 2004, tomou a palavra no Senado pela primeira vez para protestar contra Abu Ghraib, formulou as sentenças que repetiria, com mínimas variações, até o fim de sua vida. “Esta questão não é sobre nossos inimigos, mas sobre nós. É sobre o que fomos, somos e aspiramos a ser.” A prática da tortura nivela os EUA às piores tiranias, oferecendo às organizações da jihad um discurso persuasivo na cooptação de “mártires”. As técnicas de interrogatório conduzidas em Guantánamo e outras prisões off-shore, insistiu, não apenas são indignas de uma nação democrática como, também, servem aos fins dos inimigos.
O confronto era, diretamente, com a Casa Branca. George W. Bush conferira um simulacro de legalidade às técnicas de tortura, por meio de um infame memorando firmado por Alberto Gonzalez, então Advogado-Geral da União. No início, McCain enfrentou, praticamente isolado, a muralha do “consenso patriótico” produzido pelos atentados do 11 de setembro de 2001. No fim, sua voz foi o elemento singular mais decisivo na interrupção da marcha rumo à barbárie.
McCain parou Bush — e nunca abandonou a batalha que, sabia, jamais terminaria. Em maio, falou contra a nomeação de Gina Haspel para a chefia da CIA, recordando a omissão dela face à tortura num centro clandestino de interrogatório na Tailândia, em 2002. “Isso não importa; afinal, ele está morrendo”, comentou na ocasião Kelly Sadler, assessora de Trump, numa declaração típica do atual governo americano. Sadler tinha razão sobre a iminência da morte do senador. Mas errava, estupidamente, sobre as coisas que, de fato, importam.
Fonte: “Folha de S. Paulo”,01/09/2018