O historiador afirma que o Brasil perdeu o bonde da história ao apostar no capitalismo de Estado, em um período marcado pela expansão das empresas globais
Desde o lançamento de “Mauá – O Empresário do Império“, em 1995, Jorge Caldeira vem se firmando como um dos grandes estudiosos da história econômica brasileira. O livro “Nem Céu Nem Inferno” é o mais recente dos seus trabalhos e reúne ensaios que desfazem diversos clichês do pensamento nacional. Eis dois deles: o Brasil não possui tradição democrática e nem sequer empreendedores dispostos a tomar risco. Na verdade, seus textos minam pilares da lógica segundo a qual vivemos em um imenso deserto, onde mínguam o dinamismo e as instituições. Pelas mãos do passado, ele mostra o contrário – descortina um país pouco percebido, mas que pulsa no presente.
Época Negócios – Olhando para o passado, o senhor se recorda de algum período que se aproxime da incerteza política que estamos vivendo?
Jorge Caldeira – Temos vários. Como historiador, uma das minhas diversões era, a cada vez que o Lula falava “pela primeira vez na história…”, lembrar os 72 casos anteriores. Outro dia, eu estava discutindo quais eram os vices que, digamos assim, aglutinaram forças contra a presidência. Tem um monte. O Floriano Peixoto era vice do Deodoro da Fonseca; o Manuel Vitorino, vice do Prudente de Moraes. Mas eu acho que o problema hoje é de natureza diferente. É mais da palavra fiada do que de qualquer outra coisa. E, como resultado, está tudo meio encalacrado.
Época Negócios – Qual é a natureza do problema atual?
Caldeira – Eleição, para que a coisa seja pra valer, tem de ter um nexo entre o que se fala e o que se faz. O eleito se compromete com o eleitor. Mas o Collor disse: “A poupança é sagrada”. E fez o que fez. Isso rompe o vínculo entre o que foi prometido e o que foi feito. O mesmo ocorreu quando a presidente Dilma disse que “não vai haver mudanças, não temos crise…”. Um político só pode ter esse tipo de atitude se pressupõe que os pobres são idiotas e não sabem o que estão fazendo quando votam. No jogo da representação, a palavra precisa ter um valor. É um compromisso real. Se o político acha que o eleitor é uma ficção, o seu compromisso será de ficção.
Época Negócios – O senhor contesta a ideia de que o Brasil não tem tradição democrática. Quais dados indicam isso?
Caldeira – Isso está em um dos ensaios do meu novo livro. Temos eleições nas vilas do Brasil desde sempre. Desde 1532, em São Vicente; 1541, em Olinda; 1535, em Porto Seguro; 1565, no Rio de Janeiro… Isso se repete regularmente. A eleição, no Brasil, é o fenômeno mais regular. Os vereadores de São Paulo estão na 147ª legislatura. Um vereador eleito, se não morrer, completa o seu mandato e o passa para outro. Isso é estabilidade. Estabilidade imensa. Só que não faz parte dos valores da sociedade. Hoje, fala-se da vida política no Brasil como se fosse uma coisa desestruturada, que está começando… Não, está estruturada pelos pobres. Lá em cima, no topo, ela é meio bagunçada.
Época Negócios – E o Congresso Nacional?
Caldeira – Idem. O Congresso brasileiro, desde que a nação é nação, funciona, há mais de 200 anos, e tem maior regularidade do que o Congresso francês. Portugal só veio a ter Congresso estável no fim do século 20. Isso é uma instituição política brasileira. Só que a gente acha que o Congresso é a última das coisas e que todo político é ladrão. Então, esse é um dos pontos da nossa história: valoriza-se muito o lado autoritário e o governo central, mas desvaloriza-se radicalmente o lado permanente, onde está representado o grosso da população.
Época Negócios – O problema não estaria na qualidade da representação?
Caldeira – O Mark Twain tem uma boa frase, que diz “The best Congress money can buy” [em português, “O melhor Congresso que o dinheiro pode comprar”]. De forma geral, a representação não é dada pela estatura moral dos eleitos. Ela é a cara do país. O Tiririca, por exemplo, representa uma parte do Brasil, embora muitos possam não gostar disso. Mas no século 16 a qualidade dos representantes era uma questão inexistente. Essa discussão só surgiu no mundo muito mais adiante, em meados do século 20. Também é preciso dizer que, na passagem do século 19 para o século 20, tivemos bons representantes, nomes como José Bonifácio e Diogo Antônio Feijó, ambos presentes no meu novo livro.
Época Negócios – O senhor tem dito que o Brasil perdeu o bonde da história. Quando e como isso aconteceu?
Caldeira – No começo da década de 70, com a crise do petróleo e o fim do padrão-ouro, há um ponto de inflexão, onde tudo muda. Lembrando que até 1973 vínhamos muito bem, com um PIB absoluto maior do que o da China. Mas, em 1973, a globalização faz com que a acumulação de capital deixe de ser comandada pelos Estados nacionais e passe para o comando das multinacionais. Na China, onde o setor estatal dominava 100% da economia, na época, essa participação, hoje, é de um pouquinho mais da metade. Na Suécia, um país poderosamente social-democrata, aconteceu a mesma coisa. Na França e na Itália, que têm Estado grande, deu-se o mesmo. Na Alemanha, Estados Unidos, Inglaterra, Austrália, Argentina e África do Sul, idem. Quero dizer que isso não foi uma escolha: é uma tendência global. O mundo enriquece aumentando a participação do setor privado na economia. Isso ocorreu em todos os países que deram certo de 1973 pra cá.
Época Negócios – E no Brasil?
Caldeira – Aqui aconteceu o contrário. De 1973 em diante, o Brasil perdeu esse ciclo que dependia da empresa privada se expandindo fora do país. Perdeu. Fez duas grandes zonas de investimentos, baseadas no pressuposto de que o mercado nacional seria o centro de acumulação e do desenvolvimento. Uma com Ernesto Geisel [presidente entre 1974 e 1979], que criou 400 estatais – Telebras, Siderbras, Petrobras… –, levando-nos a uma crise monumental nos anos 80. Os investimentos não se mostraram rentáveis, o mundo cresceu mais do que o Brasil, o país perdeu o bonde, recuperou-se a duras penas e, agora, nos governos Lula e Dilma, voltou a fazer a mesma coisa. Imensos investimentos na suposição de que o Estado comanda.
Época Negócios – Em que situação estamos hoje?
Caldeira – O resultado de dois ciclos de investimento contra a tendência mundial da globalização foi que nós perdemos o bonde da história. Agora, estamos indo para a rabeira do desenvolvimento mundial por nossos méritos. Ninguém nos obrigou a ser nacionalistas. Vivemos uma crise monumental sem saber como sair dela, porque sequer se vê que a globalização não era um problema ideológico. Ou que esquerda e direita, desde então, não têm bases geopolíticas nem econômicas. O Brasil está perdido nesse mundo global.
Época Negócios – Qual o papel dos empresários nesse cenário?
Caldeira – Os empresários nunca comandaram, porque eles nunca tiveram os capitais. A dívida pública é feita para garantir que o Estado seja o grande investidor da nação. Não é uma escolha dos empresários. Outro dia, um ministro falou no “instinto animal dos empresários”. Na visão de quem está no governo, isso quer dizer que o Estado pensa e o setor privado é animal. Isso é uma visão pré-anos 70 que sobreviveu no Brasil.
Época Negócios – Isso explica a proximidade de empresários como Eike Batista, Marcelo Odebrecht e André Esteves do governo?
Caldeira – As condições institucionais brasileiras obrigam que o Estado seja sócio de todas as empresas, porque ele comanda os investimentos. Então, as companhias são obrigadas a se capitalizar no Estado. Para recorrer ao capital de fora, os empresários têm de correr risco cambial. Por isso, digo que não é uma escolha e tampouco uma questão moral. O problema é que a estrutura do mercado de capitais tem o Estado como maior investidor ditando as regras. Isso é bom? Traz desenvolvimento para o país? Essa é uma pergunta que temos de fazer hoje. Os empresários todos acabaram apoiando isso, mas no fim o ciclo não trouxe um grande desenvolvimento.
Época Negócios – O senhor arriscaria dizer quais empresários terão sua história lembrada daqui a algumas décadas?
Caldeira – Acho que o Luiz Seabra, da Natura, ao lado do Guilherme Leal e do Pedro Passos. Ele criou uma estrutura no mínimo pouco ortodoxa. O Jorge Paulo Lemann é uma pessoa que conseguiu dar um salto e ter um empreendimento que não é o normal no Brasil. O Abilio Diniz é outra figura dessa natureza. No século 20, o Antônio Ermírio de Moraes, o Walter Moreira Salles… Todos eles criaram empresas grandes – até onde o Estado brasileiro permitiu –, vendo coisas onde não se via, bordando tudo de maneira diversa. Para trás, a lista é infinita.
Fonte: “Época Negócios”
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