Críticas à imprensa se tornaram corriqueiras – a maioria, pelos motivos errados. O principal defeito dos jornais e revistas brasileiros não está na ideologia nem nos procedimentos editoriais (em que pesem queixas legítimas). Está na deterioração do texto. O Brasil talvez seja o único país em que alguém pode ser jornalista bem-sucedido sem saber escrever direito. Sempre pôde contar com editores abnegados, dispostos a reescrever qualquer aberração, depois assinar com o nome alheio. Nas últimas décadas, nem isso tem bastado. Por uma conjunção madrasta de forças econômicas e culturais, a imprensa se vê nas mãos de uma geração que não foi educada para a escrita. É algo visível no nível mais básico, tal a profusão de erros de concordância e regência, de palavras e partículas desnecessárias (“que”, “se” ou “de”), de textos viscosos e confusos. Mas também num nível mais grave e insidioso. Fora os deslizes sintáticos, ortográficos ou estilísticos, em certa medida inevitáveis diante da pressão dos prazos, o texto jornalístico se tornou refém da preguiça mental e dos chavões. Não passa um dia sem que alguém cometa, nas páginas da grande imprensa, uma “ponta de iceberg”, uma “joia da coroa”, um “divisor de águas” ou uma “rota de colisão”. Quando falta apuro na linguagem, natural que falte também nas ideias. O problema da imprensa é, na essência, um problema de linguagem.
Daí a relevância e a atualidade de Guimarães Rosa, morto há 50 anos. Na divisão clássica, há escritores que se impõem pela força da narrativa, como Dickens ou Tolstói, outros pela linguagem, como Joyce ou o nosso Rosa. Ele destilava cada frase, cada palavra, cada vírgula para alcançar seu estilo singular. É um erro crer que apenas reproduziu o falar característico do sertão. Seu texto derivava de vasto conhecimento linguístico, em que a estrutura sintática do alemão podia se aliar a uma expressão do francês ou a um neologismo importado do russo para expressar o pensamento ou a ação do sertanejo. Tal mecanismo sofisticado, presente em todas as suas obras, faz de muitas uma leitura difícil, por vezes maçante. Parecem escritas num idioma estrangeiro, em tudo similar ao português. Ninguém jamais escreverá como ele. Mas é leitura fundamental, recompensadora até, para quem deseja ou precisa, como os jornalistas, dominar as engrenagens e a artesania da linguagem escrita.
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Nenhuma das obras de Rosa é tão didática a respeito de sua relação com a linguagem quanto o último livro que publicou em vida, meses antes de morrer, a coletânea de contos Tutameia. Em 44 textos, chamados de “estórias”, Rosa produziu seu testamento literário. Quarenta deles haviam sido publicados anteriormente – a maioria na revista médica Pulso, dois no jornal O Globo, onde também publicara os contos da coletânea Primeiras estórias. Quatro são novos, classificados como prefácios, embora apenas um ocupe a posição convencional na abertura do livro. O leitor encontra os outros três entremeados às demais estórias. Na edição original, publicada pela Livraria José Olympio, há dois índices: um no começo, com as estórias em ordem alfabética (ou quase); outro no final, o “índice de releitura”, com os prefácios separados. Esse segundo índice é um recado do autor: apenas uma leitura não basta. A vantagem prática de Tutameia é justamente poder ser lido e relido aos poucos. A restrição de espaço nas publicações originais obrigou Rosa a produzir textos curtos e independentes, num esforço de condensação que aproxima sua prosa da poesia. Ler um por dia contribui para melhorar a escrita de qualquer um.
O cenário das estórias é o ambiente familiar a Rosa, os descampados, matas e cenários ermos do sertão mineiro. Os personagens, na descrição do crítico Paulo Rónai, são também familiares: “Vaqueiros, criadores de cavalos, caçadores, pescadores, barqueiros, pedreiros, cegos e seus guias, capangas, bandidos, mendigos, ciganos, prostitutas, um mundo arcaico onde a hierarquia culmina nas figuras do fazendeiro, do delegado e do padre”. É nos quatro prefácios, cheios de ironia, que ele nos deixa seu legado explícito. São textos urbanos, reflexões de um escritor em eterno embate com as palavras. O primeiro é uma discussão algo filosófica, sobre como representar algo por meio da ausência. No segundo, ele defende os neologismos. No terceiro, narrativa trôpega sobre a volta de um bêbado a sua casa, demonstra nas palavras e no ritmo a importância da forma para o conteúdo. É no quarto, reunião de sete histórias pessoais, que traduz o título, no final de um glossário. A palavra “tutameia” pode aparecer no dicionário com o sentido de “ninharia”, mas era para Rosa “mea omnia” (toda minha, em latim), a síntese de toda a sua obra. Publicada, em boa parte, pela imprensa.
Fonte: “Época”, 03/12/2017
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