Jornalismo se faz no calor da hora; História, só depois que os eventos adormeceram no leito do passado. No ano louco de 1989, Timothy G. Ash conseguiu a façanha de juntar os dois, no livro “Nós, o povo” (Companhia das Letras, 1990). Escrevendo pouco antes da queda do Muro de Berlim, ele traduziu o sentido mais amplo das revoluções que destruíram o “socialismo real”:
Karl Marx jogou com a ambigüidade da expressão alemã burgeliche Gesellschaft, que tanto podia ser traduzida como sociedade civil quanto como sociedade burguesa. Marx (…) nivelou deliberadamente as duas “cidades” da modernidade, os frutos da Revolução Industrial e Francesa, o burguês e o cidadão. (…) O que a maior parte dos movimentos de oposição por toda a Europa central e grande parte do povo que os apóia está realmente dizendo é: Sim, Marx tem razão, as duas coisas estão intimamente ligadas – e nós queremos as duas! Direitos civis e direitos de propriedade, liberdade econômica e liberdade política, independência financeira e independência intelectual, cada um desses termos apóia o outro. De maneira que, sim, queremos ser cidadãos, mas também queremos ser de classe média, no mesmo sentido que a maioria dos cidadãos da metade mais afortunada da Europa é de classe média.
A vaga de triunfalismo que se seguiu à queda do Muro exprimiu-se no discurso da “Nova Ordem Mundial”, de George H. Bush, e no quase simultâneo, logo célebre, artigo de Francis Fukuyama. A tese do “fim da História” anunciava o “ponto final da evolução ideológica da humanidade” e a “universalização da democracia liberal ocidental”. Fukuyama cometia um erro de diagnóstico. Hoje sabemos que também cometeu um erro de prognóstico.
O primeiro erro: o triunfo não foi do “capitalismo liberal”, mas de um sistema mais complexo, que denominarei “capitalismo de mercado”. No modelo liberal clássico, o Estado cumpre apenas as funções de sentinela da soberania externa, da ordem interna e da santidade da moeda. O capitalismo de mercado é algo bem diverso, que se desenvolveu sob os signos da democracia de massas e do Welfare State. Nos anos 20, os gastos públicos sociais nos EUA não atingiam 5% do PIB. Hoje, tais gastos superam a marca de 20% do PIB – e isso no país que é o ícone do “liberalismo”. Como colar o rótulo do liberalismo sobre um sistema no qual os liberais não se reconhecem?
A modernidade é o fruto combinado dos princípios complementares, mas contraditórios, da liberdade e da igualdade. O capitalismo de mercado foi gestado pela concorrência entre o “partido dos liberais” e o “partido dos social-democratas”, que se alternam no poder nas democracias de massas. Sob o impacto do movimento operário, os direitos políticos se universalizaram e inventaram-se os direitos sociais. Tudo isso aconteceu do lado de cá da Cortina de Ferro, pois do outro lado da fronteira geopolítica o sistema soviético proibiu os partidos políticos e estatizou as organizações sindicais.
A fusão do modelo liberal com o programa social-democrata produziu um sistema original, expresso diferenciadamente nos países da Europa Ocidental e da América do Norte. No Manifesto Comunista, Karl Marx concitou à Revolução os trabalhadores que “nada têm a perder, exceto os seus grilhões”. O capitalismo de mercado outorgou cidadania política e econômica aos trabalhadores, frustrando a conclamação revolucionária. Ele triunfou em 1989 porque não mais era “liberal” – e os trabalhadores tinham um mundo a perder.
O segundo erro: a História não terminou, pois o espectro do Leviatã ergue-se mais uma vez, sob a forma do capitalismo de estado, e desafia a hegemonia do capitalismo de mercado. A China do poder burocrático de partido único é a expressão mais insinuante do capitalismo de estado, mas o modelo aparece nas distintas roupagens da Rússia autoritária pós-comunista, da autocracia teocrática do Irã e do regime caudilhista da Venezuela de Chávez. Em torno desse projeto regressivo, rearticula-se uma esquerda nostálgica do “socialismo real” mas despojada da bandeira da Revolução.
No capitalismo de mercado, uma nítida linha divisória separa as esferas da economia e da política. O capitalismo de estado reúne as duas esferas, subordinando a elite econômica à elite política e fazendo uma classe privilegiada de grandes empresários orbitar em torno de um Estado que tudo pode. Nada há de verdadeiramente novo nisso: o Japão Meiji, a Itália fascista, a Alemanha nazista e a África do Sul do apartheid estão entre os precursores dos sistemas atuais de capitalismo estatal.
Nacionalismo e autoritarismo são feições inerentes ao capitalismo de estado. A elite política extrai sua legitimidade de um pacto imaginário com o destino grandioso da nação. A promessa de potência serve-lhe de ferramenta para calar ou eliminar a oposição, que é figurada como representação do interesse estrangeiro. A vida política impregna-se de um ácido corrosivo, que consiste na identificação da voz dissonante com a quinta-coluna. Como a liberdade não pode ser fracionada, o capitalismo de estado opera pela restrição tanto dos direitos econômicos quanto dos direitos políticos.
Há pouco, Fernando Henrique Cardoso ofereceu um esboço do bloco de poder organizado em torno do lulismo. No seu desenho, destaca-se o tripé constituído por um Estado esvaziado de sentido público, empresas estatais capturadas por uma máquina partidária e empresas semi-privadas geridas por alianças entre grandes empresários e fundos de pensão sob controle de sindicalistas. Eis aí o estágio embrionário de um capitalismo de estado brasileiro.
Nas eleições de 2006, Geraldo Alckmin foi desafiado a defender o capitalismo de mercado. Ele se fez de desentendido e, no lugar do confronto de ideias, ofereceu uma rendição sem combate ao discurso do capitalismo de Estado. Lula e sua candidata reeditarão o desafio em 2010.
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