O Brasil já é um dos campeões de cirurgias plásticas. Dentre as favoritas, agora com a adesão de famosos esportistas, está a lipoaspiração. Trata-se de um procedimento cirúrgico para retirada de gorduras localizadas e, normalmente, desnecessárias. Pois bem, isso é o que, metaforicamente, precisamos fazer com nossa Constituição federal de 1988. Por quê?
Justamente porque há excessos. Esses excessos foram fruto, de um lado, de uma geração alijada do processo democrático durante a ditadura militar (intelectuais de esquerda, sindicalistas, movimentos sociais de acesso à terra, para nomear alguns) e que depositou na Carta de 1988 suas esperanças de tudo resolver com o restabelecimento da democracia (justiça social, salário digno, lazer, educação, saúde); e, de outro, ela foi fruto de uma coleção de interesses, no mais das vezes, conflitantes entre si. Esses interesses foram retalhados nos diversos capítulos da Constituição. Profissionais da área jurídica lutaram por garantias de suas categorias profissionais, sindicatos trabalharam em favor dos direitos sindicais e trabalhistas, profissionais da saúde esforçaram-se por um direito à saúde, e assim por diante.
Com efeito, para a Constituição de 1988 – e para isso basta observar o número de cartas enviadas aos constituintes por sindicatos, ambientalistas, movimentos sociais, empresários – confluíram grupos de interesses diversos buscando a “justiça social” (como se houvesse espaço de justiça que não no âmbito da sociedade), “função social da propriedade”, “livre-iniciativa” e diversas pretensões em larga medida inconciliáveis…
Os constituintes, por esses motivos, e justamente pelo fato de terem sido deputados eleitos e com longa trajetória política pela frente, tornaram-se facilmente “apropriados” por esses grupos de interesses diversos, pois tinham interesse em seguir na vida pública posteriormente à Constituição. Não que isso seja feio ou errado, fomos apenas vítimas das circunstâncias políticas daquele momento.
Difícil, no entanto, é encontrar alguém que, naquele contexto, tenha lutado pelo interesse de todos, porque o deputado de “todos” não é reeleito.
Acontece que o estabelecimento de regras para o futuro requer, como propôs Rawls, por uma questão de justiça, que os legisladores sejam desinteressados, pois só assim conseguirão fazer regras que valham contra si mesmos, evitando o conflito de interesses (tão prejudicial e nocivo ao bem comum). Em síntese, o coletivo requer escolhas “trágicas”, análise de custo-benefício, eleição de prioridades. E essa pauta não elege ninguém, nem vence um debate político (como já percebia Aristóteles em sua Retórica).
Por isso mesmo, nossa Constituição é datada. E tem prazo de validade. Como a Constituição brasileira de 1988, sob certo aspecto, foi redigida a Constituição revolucionária mexicana, a Constituição alemã de Weimar, bem como a Constituição dirigente portuguesa. Nenhuma dessas durou no tempo, por sua falta de realismo e por sua tentativa de “engenharia social”.
Uma Constituição tão longa e detalhada é sinal e atestado de sua própria fraqueza. Quem quer tudo regular acaba por pouco fazê-lo.
Com tantos artigos e tanta amplitude, associada por uma redação pouco precisa de seu texto, a verdade é que não há lei hoje no Brasil que não possa ter sua constitucionalidade discutida. E, o que é pior, por qualquer agente do Estado nas vestes de um magistrado de primeira instância, imbuído de uma ideologia que não passou pelo teste democrático das urnas.
Sem um guia interpretativo formado por precedentes judiciais vinculantes, a interpretação dos dispositivos constitucionais é testada ad nauseam nas Cortes de Justiça, dando margem a um número infinito de recursos, sem benefício alguma para a coletividade.
É verdade que existe hoje a súmula vinculante, mas quantas súmulas, quantos julgamentos o pobre Supremo Tribunal Federal terá de enfadonhamente julgar até que se chegue a regras claras e previsíveis que possam orientar os comportamentos de uma sociedade desorientada que trata a rua como extensão da casa (da mata)?
Hayek já previa que um Direito apropriável por legisladores se afastava das práticas sociais e, portanto, afrontava a liberdade das pessoas. Direito é muito mais produto das relações sociais de uma sociedade do que sua fonte produtora.
Não se transforma uma sociedade por meio de uma nova ordem constitucional. Por meio de uma Constituição se reconhecem e se identificam regras mínimas de funcionamento do Estado nas suas relações com as pessoas.
Não é à Constituição que cabe disciplinar o funcionamento da vida privada, ou seja, do “mundo da vida”. Esse é à sociedade que cabe desenvolver, na interação real e concreta dos indivíduos.
Daí a proposição de uma “lipoaspiração constitucional”.
Chegaríamos a uma Constituição federal mais enxuta, menos ambiciosa. Ela diminuiria de tamanho. Eis a grande proteção contra os grupos de interesse. Algumas vezes, “o menos é mais” (Cooter).
Ela preveria o compromisso do Estado com direitos fundamentais negativos e positivos (de preferência, os de educação e saúde, dentro talvez dos programas e das políticas públicas orientadas pelas restrições orçamentárias). Sobretudo deixaria a tarefa de interpretar a Constituição aos tribunais superiores, quando há já maturidade para compreender os efeitos econômicos, sociais e políticos das decisões tomadas.
Passaríamos por um processo de desestatização, ou de “desconstitucionalização”, ou mesmo de “despolitização”, ou seja, de perda de gordura constitucional.
Esse será o momento de ruptura com a servidão e com o paternalismo estatal e com os grupos de interesse que povoam o Legislativo e o Executivo.
(“O Estado de SP” – 15/01/2010)
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